Pedro, de 7 anos, foi apresentado ao brincante musical Cristiano dos Santos Araujo como o aluno “mais terrível” da escola. Certo dia, em uma de suas aulas, o educador propôs jogar pega pega com regras um pouco diferentes. Cada participante iniciava com três vidas e ia perdendo aos ser pego até ter que deixar o jogo.
Ao perceber que uma menina havia perdido todas as suas chances e saído da brincadeira, Pedro teve uma atitude inesperada: entregou sua última vida para que a aluna pudesse retornar ao jogo e foi para o banco.
Questionado, o menino contou que tinha muitos amigos e que sabia que ia ser salvo em breve. Já a aluna não tinha bom relacionamento na escola e ficaria muito tempo fora da brincadeira. “Eu quero que ela brinque”, disse Pedro a Cristiano.
Se “brincar é o maior exercício de liberdade que podemos ter”, como nos ensina a educadora e etnomusicóloga Lydia Hortélio, é também na brincadeira que podemos exercitar conceitos da cultura de paz que muitas vezes ficam sobrepostos a rótulos sociais, como no caso de Pedro.
“A lógica do brincar com a criança é muito cooperativa. “Essa criança que é pega, aceita ficar parada para o outro continuar a brincadeira, ela está cooperando com o outro”, observa Cristiano.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a cultura de paz é um conjunto de valores, atitudes e modos de vida que rejeitam a violência e apostam no diálogo e na negociação como caminho para solucionar conflitos.
Ter um objetivo comum no momento de brincar faz com que meninos e meninas de diferentes idades e realidades sociais consigam olhar para a mesma direção, algo essencial quando falamos de paz. Mas isso não significa ausência total de conflitos ou da competição, como explica Cristiano. “Jogo bom é jogo que gera conflito. Eu costumo dizer que quando um não quer, dois não brincam. Isso significa que conflito não é confronto”, aponta o educador.
Esses momentos de discordância, muitas vezes, podem ser uma oportunidade de crescer e amadurecer sentimentos na opinião de Reinaldo Nascimento, terapeuta social, educador físico e psicopedagogo. Com a pedagogia da emergência, o especialista já atuou em diversos países em guerra ou que foram atingidos por catástrofes para ajudar crianças a lidarem com o trauma proporcionado pela situação violenta que vivenciaram.
“Como é que nós vamos crescer se não tivermos crises? O que não dá é para achar que a criança tem que ficar exposta, como vender bala no farol, por exemplo”, menciona Reinaldo, que aponta os momentos de brincadeiras entre crianças e adultos como ótimas oportunidades para colocar em prática o diálogo.
Proporcionar eventos que não sejam de fácil resolução tem até nome e conceito: pedagogia da crise. E para explicar o que se trata, Reinaldo traz como exemplo o anti séptico muito famoso nos anos 1990 usado em machucados, mas que era conhecido por arder a região aplicada. “É a criança saber que vai doer, mas que a mãe e o pai vão soprar. Isso fortalece, a criança passa pela dificuldade e percebe que conseguiu superar. E como é bonito saber que ela pode contar com os adultos”.
O psicopedagogo nasceu e cresceu no Jardim Ângela, na zona Sul de São Paulo, região conhecida pela violência e que foi manchete de jornais policiais muitas vezes. “Mesmo com toda essa violência, eu nunca me senti desamparado. Eu sabia que meus pais estavam olhando para que eu não fizesse nada errado. A vizinha da direita e a vizinha da esquerda, na época eu as chamaria de fofoqueiras, mas elas falavam para a minha mãe que tinham me visto sozinho, num horário em que eu deveria estar fazendo outra coisa”, relembra o pedagogo.
A rua era o lugar de encontro para as brincadeiras das crianças da comunidade, e mesmo os mais novos eram incluídos nos jogos, como relembra. “Eu sentia que enquanto eu estivesse ali com aquelas pessoas e com aquela comunidade eu teria paz. Quando um adulto está brincando junto com a gente, a palavra proteção nem se faz necessária, porque se uma pessoa está lá tão entusiasmada quanto a criança, tudo se torna tranquilo”, acredita Reinaldo.
O senso de comunidade que une as pessoas está presente em muitos jogos coletivos, como o rouba bandeira, por exemplo. O objetivo é tentar buscar a bandeira do outro time sem ser pego, e para isso, cada participante depende da ajuda do outro e das estratégias construídas em conjunto.
Os princípios de união e colaboração fazem parte dos chamados jogos cooperativos, que valorizam os aprendizados coletivos que a brincadeira pode proporcionar em detrimento da competição apenas para encontrar um vencedor.
Em seu trabalho, Cristiano usa as canções tradicionais para brincar e convida as crianças a reescrever as letras dessas músicas para que ganhem sentidos atuais, mas sem perder a essência da cantiga de roda. “Na estrutura dessas canções tem uma evocação natural de sentimentos que parece que hoje a gente não pode mais sentir, como o medo, o nojo, a raiva”, conta, reforçando que o reconhecimento de sentimentos também é uma maneira potente de se sentir em paz.
Se antes a barata precisava dizer que tinha sete saias de filó para conseguir ser valorizada e pertencer a um grupo, na canção reelaborada por Cristiano, ela só precisar ser quem ela é: “A barata aprendeu que é tão bom falar a verdade, que agora ela sai, sai feliz pela cidade, ha ha ha, ho ho ho, sai feliz pela cidade”, canta o educador.
Falar sobre as letras dessas canções também é uma maneira de resguardar a memória e contar aos mais novos como a sociedade pensava antes. “Isso nos fortalece, cria empatia. A música da infância contempla as diferentes realidades”, afirma o brincante.
Na raiz dos jogos e outras atividades brincantes está a escuta, algo “pouco praticado pelos adultos”, como analisa Cristiano, “eles propõem muito, mas escutam pouco e a cooperação nasce essencialmente da escuta. O que eu preciso fazer é entender quem são essas crianças”.
Ao invés de falar as regras da brincadeira, Cristiano propõe perguntar a quem já conhece o jogo ou até mesmo consultar os brincantes se desejam alterar as regras de forma coletiva, de modo que fique possível e interessante para todos.
As experiências e aprendizados extrapolam as quatro linhas do campo, da quadra ou da rua e ajudam a criança a construir repertórios para toda a vida. Assim como a paz, brincar faz parte da natureza da criança – e do adulto também. Basta (re)começar.