Inspirações e experiências

Notícias

Individualidade, respeito e autonomia: como funciona a Escola da Ponte em Portugal

30 de agosto de 2019

Incluir a todos e promover o desenvolvimento da autonomia e protagonismo dos alunos. Esses são princípios fundamentais da Escola Básica da Ponte, ou Escola da Ponte, localizada no distrito do Porto, em Portugal. 

Idealizada pelo pedagogo José Pacheco, a escola é referência mundial no quesito educação integral e é tema da segunda edição da #PensarAInfancia, série de matérias da Aliança pela Infância destinada a desmistificar conceitos e simplificar abordagens pedagógicas em uma linguagem acessível. 

A Aliança acredita na importância do debate e aprofundamento de temas que estão no universo da infância e, por isso, é fundamental entender um pouco mais sobre as propostas de pensadores da educação. 

Participação dos estudantes  

A Escola da Ponte é uma instituição pública de ensino, que atende alunos do Ensino Fundamental 1, 2 e Médio. Mas essas denominações não se aplicam a seu contexto, uma vez que não promove uma educação dividida em séries, ciclos ou por idade. 

Um de seus pilares é a participação dos estudantes. A ideia de promover a autonomia vai desde o espaço da escola, que não é fixo ou dividido em salas de aula, até o planejamento de suas atividades e aprendizado. 

No começo do ano, os estudantes fazem uma eleição para que alguns representantes assumam a mesa da assembleia. Nesses encontros, realizados semanalmente com todos os alunos da escola, eles decidem, juntamente com apoio dos educadores, sobre todas as instâncias de funcionamento da instituição. 

“Uma das bases teóricas do Pacheco é John Dewey, que afirma que as escolas têm que reproduzir uma micro cidade para que quando os estudantes forem para o mundo, estejam mais preparados e com essa vivência prévia de decidir tudo democraticamente”, explica Jacqueline Lopes, membro do núcleo da Aliança pela Infância de Juiz de Fora (MG).

Influenciada pelo educador português a estudar Pedagogia, ela comenta a percepção de Pacheco sobre a educação atual. “Ele fala que o ensino é um método do século 19, com professores do século 20 e alunos do século 21. É uma equação que não vai dar certo.” 

Grande admiradora dos ideais e propostas de Pacheco, Jacqueline explica porque a divisão dos alunos em séries e classes não considera as individualidades de cada um. “É uma produção em série: primeira série, segunda, terceira, quarta… Parece que vamos carimbando os alunos. Isso não é algo orgânico e só serve para adequar os estudantes a um mundo competitivo. É absolutamente ignorante pensarmos que todos os alunos de 10 anos vão ter o mesmo interesse [em aprender]. Não dá para comparar, por exemplo, o filho de um filósofo com muitos livros em casa com o filho de uma pessoa que não teve a oportunidade de se alfabetizar.”

Projetos e currículo 

Os estudantes da escola portuguesa também não vivenciam o conceito de disciplinas e sim de projetos. Eles dividem-se em espaços de trabalho com materiais pedagógicos, como livros, dicionários, gramáticas, internet e outros. “Os alunos se reúnem em grupos de interesse em torno de um tema e ficam alguns dias seguindo um roteiro elaborado junto com o professor tutor”, explica Jacqueline.  

Apesar de serem os próprios estudantes que manifestam interesse por o que vão aprender, a Escola da Ponte segue determinações sobre o currículo português. “É muito importante pontuar que a Escola da Ponte não é contra o currículo. Só que a forma de levar o conhecimento que as crianças precisam aprender é diferente. A concepção de educação é absolutamente distinta,” reforça.  

São dois currículos que determinam o funcionamento do aprendizado na Escola da Ponte. O currículo exterior ou objetivo e o currículo interior ou subjetivo. O primeiro é elaborado com base no currículo nacional de Portugal e é a referência sobre aprendizagens necessárias e realização pessoal do estudante. Está articulado em seis dimensões fundamentais: linguística, lógico-matemática, naturalista, identitária e artística, pessoal e social. Já o currículo subjetivo é o que determina o desenvolvimento pessoal, único de cada pessoa. 

Dispositivos 

A Escola da Ponte tem um portfólio dos chamados dispositivos pedagógicos, usados em diferentes momentos: quando o aluno quer se expressar, quando os estudantes estão reunidos em grupos, quando precisam de apoio em algum conteúdo, entre outras situações. 

Entre 45 dispositivos, está o jornal, com periodicidade mensal contendo todos os assuntos da escola; o jardim da poesia, onde cada estudante compartilha o poema que desejar; o ‘preciso de ajuda’, quando o aluno se inscreve para uma aula direta preparada por um professor se sentir que não conseguiu aprender de outras formas; o ‘acho bem/acho mal’, com o qual os estudantes expressam sua opinião sobre os assuntos da escola.

Com a palavra: José Pacheco 

Para entender mais a fundo alguns conceitos da Escola da Ponte e seu funcionamento, a Aliança pela Infância realizou uma entrevista exclusiva com José Pacheco, educador português que idealizou e esteve à frente da instituição de ensino durante muitos anos. Confira a entrevista: 

 

Aliança pela Infância: Um dos pilares da Escola da Ponte é considerar a individualidade de cada estudante. Por que esse princípio é tão fundamental em um processo de formação integral de uma criança e um adolescente?

José Pacheco: Como diria Paulo Freire, ‘aprendemos uns com os outros, mediatizados pelo mundo’. Freire diz-nos que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, que aprendemos na intersubjetividade. A educação é um direito também subjetivo. Todo ser humano tem direito a desenvolver seus talentos. No desenvolvimento de projetos, acontecerá não o consumo acéfalo de currículo, mas a produção de conhecimento e de currículo. A partir de sonhos, necessidades e desejos de cada ser humano e integrando conteúdos, competências e capacidades de uma base curricular, visa-se estimular talentos e cultivar os dons de cada sujeito aprendente. Hannah Arendt dizia que, quando alguém nasce, algo novo acontece no mundo. Dado que um ser humano é único e irrepetível, no desenvolvimento do currículo da subjetividade é respeitada a especificidade do seu repertório linguístico e cultural, dos seus estilos de inteligência predominantes e do seu ritmo de aprendizagem.

 

API: As Assembleias, realizadas semanalmente com a presença de todos os estudantes da escola, é uma forma de incentivar o pensamento crítico e a participação. Como essa vivência democrática desde cedo contribui para o desenvolvimento cidadão? 

J.P: A escola não deve preparar para a cidadania. Aprendemos cidadania no exercício da cidadania. Na escola, aprendemos na cidadania no exercício de uma liberdade responsável. Para que acontecesse a aprendizagem, o desenvolvimento do pensar com a formação do caráter e o exercício pleno da cidadania, instituímos dispositivos de relação, acordamos regras, promovemos a sociocracia. Os relatórios de avaliação externa revelam não só a excelência acadêmica das nossas práticas, como um satisfatório desenvolvimento no domínio do desenvolvimento pessoal e social.

 

API: Nem todos os estudantes começam a sua vida escolar na Escola da Ponte. Quais dispositivos e iniciativas são realizadas para acolher estes novos alunos e inseri-los na proposta da escola? 

JP: Quando um aluno ou um professor vem de outra escola, de outra cultura, uma “comissão de ajuda” se organiza para que o novo companheiro ou companheira se sinta “um de nós”. Apoiamos a redefinição do papel do professor e do aprendiz, na transição entre o modelo “tradicional” e uma profissionalidade assente na prática da mediação pedagógica, assegurada pelo professor “designer educacional”, co-criador, através de projetos de produção de vida e de sentido para a vida. É este contexto acolhedor que permite uma fácil “adaptação”.

 

API: O mesmo vale para os professores. Por qual processo os educadores são envolvidos para que possam entender a forma de atuar enquanto tutores da aprendizagem dos alunos? 

JP: Damos todo o tempo de que o professor precisa para compreender o novo contexto e se encontrar. Para perceber que escolas são pessoas e não edifícios. Que as pessoas são os seus valores. E que esses valores, transformados em princípios de ação, dão origem a projetos. E que os projetos são atos coletivos. Partimos do que as pessoas são e do que sabem para os apoiar com uma outra formação, porque a formação de professores continua imersa em equívocos. Continuamos cativos de um modelo de formação cartesiano, que impede um religare essencial. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é, veicula competências de que está investido. Mas ainda há quem ignore a existência do princípio do isomorfismo na formação, quem creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de formação, quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação, no contexto de uma equipe, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade negativa, de que está ausente o trabalho em equipe.

 

API: Qual é o papel e a forma de participação das famílias na proposta da Escola da Ponte?

JP: Definimos uma matriz axiológica baseada no saber cuidar e conviver, num novo sistema ético, porque os projetos humanos contemporâneos não combinam com as práticas escolares que ainda temos. Na prática de uma gestão diferenciada, a escola constituiu-se em lócus de humanização e oportunidade de inclusão também da comunidade.

Há mais de quarenta anos, os pais não se interessavam pela vida escolar dos seus filhos, não iam à escola. Atualmente, que eu tenha conhecimento, a Ponte é a única escola da rede pública gerida pelos pais e pela comunidade.

 

Saiba mais 

Confira os materiais abaixo para mais informações sobre a Escola da Ponte: 

site oficial da Escola da Ponte; 

Projeto Educativo da Escola da Ponte; 

Regulamento interno da Escola da Ponte; 

Entrevista com Rubem Alves sobre a Escola da Ponte.  

 

*Imagem: Santo Tirso TV. 

Acompanhe nas redes
-Aliança pela Infância - 55 11 3578-5001 - alianca@aliancapelainfancia.org.br