A Criança e a brincadeira
Por Zita de Barros Garcia*
Entender o brincar – por onde devemos começar?
Quando nos voltamos para a questão do brincar e da criança, algumas perguntas nos vêm à cabeça, como por exemplo: “Por que as crianças brincam?”, ou “Qual é a importância da brincadeira?” e, muitas vezes, para achar as respostas começamos pelo caminho errado. Entender o porquê e como as crianças brincam não passa, primeiramente, por reflexões teóricas – podemos até nos ater por esse viés -, mas elas sozinhas não nos levam a lugar algum. Quando fazemos isso, estamos pensando apenas como adultos, esquecidos de quem já fomos um dia. E, frequentemente, demoramos em perceber o quanto a resposta já mora dentro de nós desde que nascemos.
A partir dessa reflexão a indagação muda: “Por que deixamos de conhecer o que já sabíamos?” ou “Onde está a resposta perdida?”.
O caminho das pedras está, então, na nossa própria infância. Sem essa direção, podemos ler todos os teóricos sobre o assunto, que não chegaremos nunca a conhecer verdadeiramente o sentido do brincar. Entende-se, portanto, que esta questão não passa primordialmente pelo intelectual, mas sim pelo que é vivencial, pelo que é sentido no corpo.
Realidade interna X Realidade externa
Fazendo esse caminho chegaremos então à mesma resposta que muitos outros chegaram: as crianças brincam, primeiramente, porque gostam, porque sentem prazer.
Acredito que essa primeira colocação aqui apontada é fundamental ser esclarecida para podermos seguir adiante. Mesmo porque ela já nos evidencia que o brincar está presente em todos nós. A brincadeira não faz parte somente do mundo das crianças – apesar de reinar nessa fase -, mas também faz parte dos adultos; e se ela está tão longe de nossa realidade, algo não está certo.
Entende-se, assim, que o brincar é universal e que sempre esteve presente na existência humana.
O brincar está diretamente ligado à nossa existência, ao nosso desenvolvimento e à nossa criatividade.
Quando o bebê nasce, entra em contato com o mundo, mas ele ainda não sabe separar o que é ele do que não é. No início ele é tudo. O bebê não entende que existe um mundo para além dele, que existe uma realidade interna e uma externa. Ele vai aprendendo isso aos poucos, conforme cresce e amadurece, e o meio para que esse processo ocorra é a brincadeira. É por meio dela que a criança tem a possibilidade de unificação e integração da personalidade.
A brincadeira tem que entrar em acordo com seu mundo íntimo de fantasias e sentimentos e, concomitantemente, saber das propriedades do mundo fora dela.
A brincadeira é importante para a criança entender os próprios sentimentos que são apaixonados e, muitas vezes, contraditórios, conflitantes, como o amor e o ódio. Quando uma criança cria uma cena, ela está tentando digerir situações em que viveu e que a tomaram de surpresa evocando diferentes sentimentos. Dessa forma ela evoca-os novamente, tentando lidar com eles dentro de uma realidade já estabelecida para ela. Sendo assim, a criança repete essa brincadeira quantas vezes forem necessárias para conseguir elaborar seus sentimentos, de acordo com o que lhe é exigido. Porém, durante esse processo, ela tem a liberdade de expor esses sentimentos da maneira em que lhe convém, contanto que eles estejam dentro da cena lúdica e não na situação real.
Assim, o brincar é uma maneira de expressar sentimentos e experiências interiores, ou seja, é uma forma de entrar em contato com esses sentimentos e comunicá-los. Quando não entendemos a brincadeira de alguma criança, ela poderá ficar extremamente aflita, principalmente se for uma criança pequena, pois essa é a forma primordial que ela tem para se comunicar. Por isso o brincar é tão fundamental para a saúde da criança, tanto quanto dormir e comer.
Como a brincadeira é um meio de lidar com as situações novas, ela permite viver a ambiguidade de sentimentos. Quando uma criança cuida de um ursinho, abraça-o e, ao mesmo tempo, arremessa-o para longe, ela pode vivenciar esta ambiguidade, a mesma ambiguidade que sente em relação a sua mãe, por exemplo, e que esta sente por ela.
Dessa maneira as crianças dão escoamento ao ódio e a agressão por meio do brincar; o que é de extrema importância, uma vez que expressar seu ódio por meio da brincadeira garante a ela que não aconteça o retorno dessa violência por parte do meio em sua direção. Ao mesmo tempo, ela tem a oportunidade, como o psicanalista Winnicott nos lembra tão bem, de reparar o dano causado pelos seus sentimentos agressivos, como, por exemplo, consertar uma boneca que estragou. Dar a possibilidade de a criança exprimir o seu ódio não só quando está zangada, em um tempo e em um espaço seguro – o da brincadeira – , é essencial.
A ambiguidade de sentimentos gera também muita ansiedade; e a brincadeira ajuda a lidar com essa ansiedade. Através do jogo do Fort Dá, Freud explicita muito bem a angustia presente nos jogos lúdicos. Ele descreve a brincadeira repetitiva de seu neto, na qual um carretel é lançado para longe e depois puxado de volta, alternando esses movimentos sucessivamente. Nessa cena está presente a tentativa de dominação/controle da imagem da mãe que teve que sair de casa para trabalhar, deixando no bebê a angustia do abandono. É por essa razão que, se não oferecermos espaço para que a criança dê continuidade para suas brincadeiras – que estão sendo canal de ansiedade -, ela pode adoecer. Consequentemente, se a criança estiver tomada por sua ansiedade e angustia, ela fica impossibilitada de brincar, necessitando da nossa intervenção.
A ponte
Vimos, então, que a brincadeira é necessária para que a criança entre em contato com seu mundo interno e o conheça, ao mesmo tempo em que ela é necessária para entrar em contato com o mundo externo. A brincadeira permeia esses dois universos. Ela é a ponte entre essas duas realidades. Serve com elo entre elas. Portanto, ela está situada no entre, ou seja, diz respeito ao que Winnicott (1975) chama de transicionalidade e de espaço potencial. Neste lugar a magia se faz presente e a criatividade é matéria-prima! Criatividade que se experienciada com toda a intensidade que cabe à infância continuará sendo potência para nossos motores até o final de nossas vidas.
Os canais para a brincadeira
Existem muitos meios pelos quais as crianças encontram o lugar da brincadeira; como as histórias, o faz-de-conta, as cantigas de roda, os brinquedos construídos, os brinquedos comprados, os brinquedos da natureza, etc. E cada um desses meios, bem como eles serão utilizados pelas crianças, suprirá diferentes necessidades de cada um em relação ao brincar.
Além de suprir a necessidade de a criança entender quem ela é, suas emoções e diferenciar-se do mundo; a brincadeira também nos ajuda a reconhecer a qual lugar sociocultural pertencemos. Ela transmite história. Tenho certeza de que não há ninguém que já não tenha ouvido, por exemplo, pelo menos uma das canções ou parlendas que cantamos para as crianças ou que tenha se divertido com uma brincadeira que ensinamos aos filhos. Elas são transmitidas de geração a geração e nos posicionam no mundo.
Outro aspecto essencial, como Belintane (2006) ressalta, é a importância das brincadeiras orais para o desenvolvimento da linguagem. A voz da mãe, doce e que acalanta, tem duas funções: a de comunicar ao bebê o mundo pragmático; mas também de envolver, dar contorno e apresentá-lo ao o jogo lúdico, que mais tarde fará ele brincar com as palavras (falar) e depois brincar com as letras, sílabas (escrever). Sempre por meio do prazer da ludicidade!
O papel do adulto no brincar
Diante de toda essa percepção da importância do brincar, qual é então a nossa função em relação à criança e seu brincar?
Primeiramente, devemos garantir um tempo e um espaço para a brincadeira. Depois, dar condições para que a criança possa brincar livremente, ofertando para ela tanto um ambiente seguro, quanto possibilidades de brinquedos e brincadeiras. Esses brinquedos devem desafiar as crianças, no sentido de chamá-las para o jogo lúdico.
Porém, vale lembrar que devemos apenas ofertar e esperar que as crianças encontrem nossas ofertas sem compulsá-las a elas.
Temos também que respeitar o tempo de cada um na descoberta da brincadeira. Muitas vezes, somos tentados a colocar pela criança uma peça no quebra-cabeça, pois ela assim o deseja, mas não consegue fazer. Com esta conduta, podemos deixar a criança com uma sensação de fracasso que caminha em direção ao abandono de sua ação. É preciso deixar que o tempo da criança aconteça e não antecipar seus movimentos e nem fazer por ela aquilo que deseja, pois ela necessita adquirir experiência de perseverar e de aturar frustrações; e, por incrível que pareça, isso lhe dá muito prazer.
Ao mesmo tempo, é importante que acompanhemos a criança em suas brincadeiras durante alguns períodos, uma vez que ela gosta da aprovação do adulto que está por perto. Em outras ocasiões, ela precisa ter momentos solitários para brincar.
Temos que estar atentos àquelas crianças que não brincam e ajudá-las a reencontrarem o caminho lúdico e criativo, que, por alguma razão, foi impossibilitado de ser vivido.
Outro aspecto importante que precisamos estar atentos em relação à criança diz respeito a interferir ou não na “magia” das brincadeiras. É necessário deixar que a criança vivencie seus medos através do faz-de-conta, como, por exemplo, de uma história de lobo. É bom para elas vivenciarem o papel do terrível lobo e serem, assim, muito malvadas; como também experimentarem o papel daquele que necessita ser protegido. No entanto, se a angustia sentida pela criança tornar-se muito grande, precisamos ajudá-la a perceber que aquilo é só uma história e nada mais.
Devemos, portanto, reconhecer a importância do brincar, ensinar as nossas brincadeiras – aquelas que fazem parte da nossa história, aquelas tradicionais – e deixar espaço para que novas sejam criadas; convocando, assim, prazerosamente, a criança para o jogo lúdico, mas sem obstruir ou adulterar a iniciativa própria da criança. Ou seja, devemos oferecer oportunidades para que elas possam exercer o direito de brincar.
Zita de Barros Garcia é psicóloga e educadora. Faz parte do Grupo Hífen, um espaço para reflexão e discussão sobre as questões da infância no que envolve a família, a escola e a contemporaneidade.