Durante todo o ano, milhares de pessoas se organizam, mobilizam e se preparam para a Semana Mundial do Brincar (SMB) que acontece em maio. Os núcleos da Aliança pela Infância espalhados pelo Brasil organizam atividades para continuar promovendo e semeando a ideia de uma infância digna. Para relembrar as ações dos aliançados durante a SMB de 2018, criamos a série #BaúDaSMB.
Até agora, já apareceram por aqui Recife, Curitiba, Florianópolis, Sapiranga e Juiz de Fora. Agora é a vez de viajar para a região serrana do Rio de Janeiro e conhecer a atividade que surgiu a partir da união de três núcleos: Teresópolis, Nova Friburgo e Duas Barras. Ao todo, oito integrantes se juntaram para pensar em uma programação que pudesse celebrar a infância e o brincar livre em uma praça de Nova Friburgo.
Ivo Bernardo Maurício, artista circense e membro do Núcleo de Teresópolis, que conheceu a Aliança pela Infância por meio de Patrick Nogueira, membro do Núcleo de Duas Barras, conta que a organização da atividade foi um movimento natural de pessoas que já faziam outras ações fora do âmbito da Aliança. “Quando a gente vai fazer alguma ação da Aliança, sempre pedimos ajuda para um amigo ou outro, e todo mundo fala na mesma língua. Então a gente se une para virar festa.”
Como muitas ações, a atividade dos três núcleos também aconteceu um pouco depois da Semana Mundial do Brincar em si devido a greve dos caminhoneiros. Entretanto, isso não impediu a organização dos membros para uma grande festa. Ivo conta que, por um grupo de WhatsApp, todos relataram o que poderiam levar, onde fariam a ação e em qual horário.
“A organização no papel fica até melhor do que na prática, porque na hora da atividade estava todo mundo brincando junto, um auxiliando na oficina do outro. Como existe esse entrosamento grande, a coisa não dificulta; na verdade facilita. Como cada um já sabe até onde o pé do outro alcança, quais são as facilidades e dificuldades de cada um, nós conseguimos nos articular.”
Com uma programação pensada por muitas pessoas, a lista de atividades foi grande: teve oficina de bolhas de sabão gigante, de peteca e de malabarismos, apresentação teatral, brincadeiras de roda e espetáculo de circo. “Cada um foi colocando o seu melhor dentro da ação para que conseguíssemos atingir um bom resultado. Foi muito bacana.”
A relação do circo e a infância
Segundo Ivo, hoje existem duas propostas mais fortes de circo circulando pelo Brasil. Uma delas é circo mais acadêmico, onde os artistas precisam ter um condicionamento físico excelente para realizar números desafiadores. Do outro lado, está a linha dos três Núcleos que se juntaram. “A minha aula de circo, por exemplo, é repleta de amarelinha, pular corda, jogos populares, perna de pau e desafios, porque nós acreditamos muito nessa força.”
Essa linha de trabalho pode ser aplicada em diferentes contextos e realidades como, por exemplo, no acompanhamento de crianças com algum tipo de deficiência. “Durante um ano e meio, eu trabalhei em uma clínica de crianças com deficiência como terapeuta. E a minha terapia era justamente a terapia do circo, do riso. Nessas oportunidades a gente descobre que esse encantamento que geramos com essas crianças é algo que transforma suas possibilidades. Enquanto os adultos falam que tal coisa é errada ou não existe, elas conseguem provar pra gente que esse mundo mágico existe sim quando apontam para uma nuvem e falam que tem um formato de coelho.”
Segundo o artista, essa magia relaciona-se diretamente com o circo, que pode acontecer de uma forma bela, forte e física ou de uma maneira mais poética, que aposta na relação humana como instrumento de conexão. “A partir disso, dessa aproximação, as crianças começam a desenvolver a parte corporal, cognitiva, de concentração, a frustração e a conquista. E o resultado é incrível porque dá para vencer traumas de infância e possibilitar para elas [situações para desenvolver] a persistência, que hoje em dia vemos tão falha. As crianças têm tanto acesso a brinquedos e possibilidades variadas que elas se perdem. No circo nós direcionamos para que elas consigam vencer o obstáculo e não troquem o desafio para ser mais fácil.”
Ocupação de um espaço público
Por trabalhar com crianças e o público espontâneo da praça, há uma visão comum entre os três núcleos e as trupes de circo envolvidas de trabalhar com um humor mais limpo e não envolver política ou números mais pejorativos e violentos.
Mas, fora esses cuidados, o trabalho é, em sua maioria, espontâneo. “A gente vive se encontrando e falando ‘vamos fazer um trabalho junto hoje’. Não existe roteiro. Somos brincantes e o nosso brinquedo é o palhaço. Nós trazemos da folia de reis, do folguedo e da cultura popular e partimos para a brincadeira livre. O sorriso da criançada, os aplausos, a brincadeira e os jogos que vão se estabelecendo é que norteiam o nosso trabalho. Por vezes entramos com uma proposta e ela se modifica durante o espetáculo.”
Levar tudo isso para uma praça é uma estratégia para democratizar o acesso à cultura, para que todo tipo de público possa acessar um espetáculo, por exemplo. “Hoje em dia não acredito mais na força de empresas financiando a cultura. Acredito mais na força que a gente pode ter no coletivo. A arte pública tem justamente o papel de desenvolver no espaço público algo que não está sendo desenvolvido pelo poder público, o que inclusive está presente Constituição Federal, que é o livre acesso à cultura, ao brincar e à saúde, e o brincar está ligado diretamente a saúde.”
Dessa forma, ao realizar atividades em uma praça, é estabelecido contato com uma gama de pessoas: desde crianças, passando por adultos até idosos, incluindo pessoas com algum tipo de deficiência e dos mais ricos aos mais pobres. Ivo comenta que, quando um morador de rua se envolve com o espetáculo, por exemplo, é uma oportunidade de criar uma relação de respeito e transportar isso para adultos e crianças.
“A gente vai além e dá acesso sem limite de idade, renda ou cultura. Na ação que realizamos aqui em Teresópolis, por exemplo, temos apoio dos feirantes e de uma moça que capta os nossos brinquedos para poder vender, gerando recursos para que a gente mantenha essa roda girando. As atividades na praça também geram apoio dos próprios moradores da cidade que falam: ‘opa, antes de eles estarem na praça, a gente não tinha nada, ou melhor, tínhamos tráfico, bagunça e uma desordem danada’. Agora que eles sabem que no domingo que a gente ocupa, é o momento que podem ir com a família e chamar outras pessoas. Então eu acredito que a rua é um espaço mais verdadeiro do que o espaço privado.”