A Semana Mundial do Brincar acabou, mas a importância de refletir e praticar o encantamento pela infância continua. Portanto, aproveitando o mês das férias, o período das brincadeiras, a Aliança pela Infância propõe uma série especial de conteúdos sobre esse ato tão essencial da experiência humana.
Para tal, convidamos especialistas das mais diversas áreas para construírem reflexões sobre o brincar. Nessa primeira publicação, apresentamos um texto de Marcelo Peron e Gandhy Piorski. Leia, reflita, brinque e espalhe essa ideia por aí.
#ecosdobrincar
O brincar que encanta o tempo
Marcelo Peron e Gandhy Piorski
Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
(Força estranha, Caetano Veloso)
É o brincar que encanta o tempo – fala em mim a meninice, para a qual as palavras, em seu muito existir, estão sempre úmidas do orvalho delicado do acontecimento-manhã, que o poeta João Cabral sonhou tessitura em som. Fios por certo, delgados como tal, mas som que se faz luz; luz que se faz cor; cor que propõe o visível e suas infindáveis surpresas. O brincar tem por veste uma magia, um manto-tenda-circense, que em seu perdurar subtrai o brincador ao mundo e o convida às vicinais do caminho principal que, de si mesmo, não sabe, não quer ou não se permite parar.
É essa a magia que ensina o tempo – que pisa firme em seu terno e nos coturnos, que indica o certo com dedos em riste, que marcha como autômato – a dar as meias voltas de peão, a ricochetear contra o ar livre, como fazem meninos e meninas multicor, em pele e roupas, nas correrias-bando-de-passarinhos. Nesses pequenos grupamentos brincantes, com seus cavalos-cabo-de-vassoura, barcos-de-leme-roda-de-bicicleta, chapéus-primeira-página-de-jornal, as necessidades que advogam as causas da tragédia são colocadas em suspensão, para que se possam exercitar os intercâmbios sociais próprios a um mundo que não precisa e não deseja ser feio.
No brincar e no brincante, que sobrevive à meninice, veem-se frente a frente um tempo extenso, que não para de fluir e que deseja nos ter por inteiro para suas urgências e necessidades e um tempo intensidade, de que nos embebemos, tal qual a delicada fragrância da madeira, que subsiste e resiste à morte da árvore. Esse halo-porta, materialmente gotas do tempo, em que vivemos plenamente os afetos que, como a força imposta pelas mãos ao barro, nos fizeram e farão vasos. Um aroma, uma cor, a brisa que chega sem avisar, a rede em que o corpo redescobre o pendular do colo, a neblina que prenuncia o inverno, a fina fumaça do café com leite de uma manhã, em que de repente cabem tantas outras manhãs, em que eu era pequeno, você era pequeno e o mundo, ah o mundo, imensidão.
Há, portanto, um tempo que é pertinente ao brincar que é encanto pleno, porque nele tudo nele é possibilidade e mesmo às coisas ainda não ocorreu serem designadas a cumprir uma função, render trabalho. No brincar, os reinos humano e natural ainda não se separaram completamente e, nele, os olhos entrecruzados dessas potências espelham suas empatias recíprocas, em reflexão infinita. Tudo está vivo e mesmo o que não se mexe tem propriedades sensíveis intensas: dureza, aspereza, calor, cor, maciez, cheiro.
Brinca-se, então, sobre a pele de jacaré, do abacateiro lá da esquina; com os redondos macios e acolhedores, cujas curvaturas a madeira entrega à grosa e à lixa. Navega-se azul, por um céu que começa na cercania imediata da vista, que se fecha para que cintilem na alma estrelas em polifonia de cor e tom. Da nota azul escuro, do Cruzeiro que vai fundo na noite, ao amarelo incandescente, que incendiou o mundo de Van Gogh.
Somos tomados, vida afora, ao tempo que insiste em nos ter, por outro modo de ser do existente, o brincar – que não deixa de ser uma intensidade sem tempo. Desse fora do tempo, não pára de nos chegar o cheiro do cedro e do alabastro; o verde silencioso da folha, que acabou de se espraiar em verdume; as fragrâncias lilás, rosa e carmim, que pintam as flores da aquarela, de cujo plano de fundo, revoam borboletas recém-tecidas, brotam girassóis sem raízes, que são candeeiros no escuro, que de quando em quando vai ter conosco.
É o brincar – que não passa, mesmo para aqueles que lhe resistem, agora, crescidos – que nos presenteia com um faro para a alma do mundo (anima mundi), que jamais se apaga. Nessa barriga brincante, quando se brinca, nos redescobrimos em empatia com a vida e capazes de experimentar tudo quanto exista ou tenha existido, como novidade.