Inspirações e experiências

2024

Vai ter Roda de Conversa hoje, prô? 

7 de março de 2024

Por Carolina Scorce

Brincando se aprende. Conhecemos bem, para ficar em apenas um exemplo, o potencial das brincadeiras para transmitir habilidades socioemocionais para as crianças. Mas as brincadeiras inventadas pelas próprias crianças também são uma forma delas transmitirem preocupações, desejos e desconfortos. Brincando se ensina. E na roda trocamos.

Rosana Dias, professora e coordenadora pedagógica aposentada da rede municipal de São Paulo, nos conta uma história emblemática de como as Rodas de Conversa são um caminho para organizar e acolher as expressões das crianças.

No fim dos anos 1990, Rosana se deu conta de que as crianças da educação infantil, os pequenininhos, estavam fazendo a famosa brincadeira de “polícia e ladrão”, que consiste em um pega-pega onde uns são os polícias, que devem pegar os que fazem o papel de ladrões, e os outros são os ladrões, que devem ser pegos e presos. Ou fugir, por que não?

Cada grupo acaba elaborando a brincadeira conforme o seu repertório e o desejo daquilo que querem viver com aquela experiência. “Era interessante porque eles estavam mesmo muito envolvidos na brincadeira. Quase toda a turma embarcou de uma vez só”, conta Rosana.

Foi esse grau de envolvimento o gatilho para que Rosana parasse suas outras atividades para observar a movimentação da turma. Parte das crianças, os ladrões, ela conta, foram presas em um portãozinho do pátio que dava acesso ao jardim.

E a quantidade de crianças presas foi enorme. Quase todos. Os alunos identificados como a polícia apontavam o dedo para os outros imitando armas, e havia um que fazia uma abordagem policial nos colegas, encostando eles contra a parede; o popular “enquadro” e “geral”.

Ele dava uma dura mesmo. Falava muito bravo com os colegas de brincadeira”, conta Rosana.

Foi aí que uma das alunas, uma aluna muito esperta, inteligente, chamada Aila, gritou: rebelião! E todos os outros presos começaram a gritar junto. Foi uma comoção. Eles então fugiram da prisão e a brincadeira de pega-pega recomeçou.

Rosana dava aulas em uma escola da periferia da Zona Norte de São Paulo, e em uma época de explosão de rebeliões no sistema prisional da cidade. O Massacre do Carandiru, como ficou conhecido um dos maiores casos de violência aos direitos humanos da cidade, foi consequência de uma rebelião ocorrida na Casa de Detenção de São Paulo – também localizada na Zona Norte, em 1992, poucos anos antes da experiência de Rosana com seus alunos.

Embora a roda de conversa fizesse parte da rotina dos alunos, naquele dia ela não estava prevista. Mas a professora quis entender por que a escolha do tema e chamou o espaço.

Nos sentamos em círculo e fomos conversar. Contei que tinha achado a brincadeira divertida, e perguntei como eles a tinham escolhido e por que quiseram brincar daquela forma. Começamos a conversar solto”, explica.

Foi então que a professora descobriu ao menos três alunos do grupo filhos de pais cumprindo pena no sistema prisional. Um deles era o pai de Aila, a garotinha que havia proposto a rebelião, e que não por coincidência também tinha sido a aluna a propor a brincadeira para todo o grupo.

Aila estava preocupada. A avó, sua tutora, responsável pelo seu cuidado na ausência do pai e no período em que mãe estava no trabalho, estava triste e angustiada. “Ela nos contou que a avó chorava muito, e que às vezes ia para a frente do presídio. A Aila estava preocupada com a segurança do pai e com a angústia da avó, e queria resolver a situação.

O resto é mais roda e mais conversa. Rosana usou o espaço para acolher os alunos. Tanto aqueles que estavam vivendo a experiência do encarceramento e da violência concretamente em suas famílias, como aqueles assustados pelo fato de haverem colegas cujos pais viviam essa realidade.

Rosana explica que esse acolhimento foi possível através da escuta atenta, do diálogo, e da rotina com as rodas de conversas. Se juntar em círculo e conversar não era algo novo para as crianças.

Já fazíamos isso. Eles não achavam que estavam sendo chamados para uma averiguação ou algo assim. Tanto que quase diariamente um ou outro perguntava: vai ter roda de conversa na rotina hoje, prô?

Método Paulo Freire 

Rosana se formou em pedagogia em 1982, e logo foi trabalhar em escolas particulares, onde, segundo ela, o professor era o protagonista do ensinar, e não a criança.

Essa inversão ocorreu quando ela passou a trabalhar com o ensino público municipal de São Paulo, isso no exato momento em que a gestão da cidade estava a cargo da prefeita Luiza Erundina, e a Secretaria de Educação sob o comando do pedagogo Paulo Freire.

O Paulo chegou mudando tudo, e o principal era que o ensino devia ser baseado no diálogo com os estudantes e calcado em suas realidades. Que nós déssemos ferramentas para que eles pudessem elaborar a própria vida. Eu trabalhava muito nessa chave. Foi nesse momento que incorporei a roda de conversa como estratégia pedagógica”, explica a professora.

As rodas de conversa foram intituladas por Freire como “Círculos de Cultura”, cujo objetivo é promover espaço de fala e escuta. Ouvindo, temos a chance de nos colocar no lugar do outro, exercitando o que o pedagogo chamava de “pensar certo”, ou seja, dialogar entre a prática e a teoria. Ou teoria colocada em prática, como fez a educadora Rosana com suas crianças.

Semana do Aprender

Esta matéria integra as ações da Semana do Aprender 2024 – A Roda do Aprender, promovida pela Aliança pela Infância de 04 a 10 de março de 2024. Durante essa semana especial, todos estão convidados a refletir e realizar ações acerca dos inúmeros momentos de aprendizado que ocorrem em nossas vidas cotidianas. A criança aprende em todos os espaços e contextos em que interage com outros adultos, outras crianças e com o ambiente ao seu redor. A Semana do Aprender faz parte do calendário do ABCD Encantado da Infância (Aprender, Brincar, Comer e Dormir). A próxima será a Semana Mundial do Brincar, de 25 de maio a 02 de junho, sob o mote “No Ritmo do Brincar”.

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