Se antigamente era preciso consultar uma enciclopédia para descobrir uma curiosidade científica, por exemplo, hoje basta uma busca rápida no Google e pronto: em dois segundos mais um conhecimento foi adquirido. E isso pode ser feito de qualquer lugar a partir da facilidade que smartphones e aparelhos portáteis oferecem. Mas a superexposição às telas tem um lado positivo e um negativo. Dia após dia vem crescendo a discussão sobre possíveis prejuízos para aqueles que convivem e utilizam eletrônicos em idades precoces, como na primeira infância, quando a criança está em pleno desenvolvimento.
Recentemente, o governo norte-americano, por meio do Instituto Nacional de Saúde (da sigla em inglês NIH – National Institutes of Health), lançou um estudo sobre o efeito das telas no cérebro. Em linhas gerais, a pesquisa, que se deu em mais de 21 locais ao redor dos Estados Unidos e contou com o acompanhamento de 11 mil crianças durante uma década, teve como objetivo entender como o chamado ‘tempo de tela’ impacta na estrutura cerebral das crianças, assim como no desenvolvimento emocional e da saúde mental.
A pesquisa milionária, que recebeu investimento de 300 milhões de dólares, também mostrou que crianças que ficam mais de duas horas por dia em telas apresentam níveis inferiores em testes de raciocínio e linguagem.
Vale ressaltar que, como o fenômeno das telas é recente, o tema ainda demanda processos de comprovação. Muitas das descobertas apontadas pelo estudo norte-americano, por exemplo, precisam passar por testes para serem validadas, como a relação entre o tempo de tela e o fato de que triplicou o número de entrada em pronto-socorros de meninas entre 10 e 14 anos vítimas de automutilação, além de uma aceleração do processo de maturação do cérebro.
Relação com o vício
Mas por que perde-se tanto tempo de vida com fotos e vídeos em redes sociais, deslizando por aplicativos desenvolvidos para atrair atenção? Uma das possibilidades é que a resposta a essa pergunta está diretamente atrelada às sensações que as redes sociais proporcionam. O estudo identificou que o ato de ver suas redes sociais, especificamente o Instagram, estimula a liberação de dopamina, neurotransmissor relacionado ao prazer.
Pesquisadores do estudo advertem que essa possibilidade de vício é ainda maior entre crianças em relação aos jovens, uma vez que essas são mais vulneráveis devido ao fato de que fazer algo acontecer, como em um jogo eletrônico, e receber uma recompensa por isso, é muito mais gratificante para elas do que para adolescentes.
Restrição e controle do tempo de tela
A Academia Americana de Pediatras também divulgou um estudo recente com orientação às famílias e responsáveis sobre tempo de tela e, para crianças mais novas do que dois anos, a pesquisa indica evitar completamente o uso de mídias digitais. Isso porque já foi comprovado que as crianças não conseguem transpor o conhecimento desenvolvido nas telas em jogos de montar, por exemplo, para a dimensão da vida real. Ou seja, mesmo que ela já tenha brincado com jogos nessa linha no computador, celular ou tablet, o aprendizado não será transferido para a brincadeira com blocos de verdade.
Limitar e até mesmo restringir o tempo das crianças em aparelhos eletrônicos é uma posição defendida também pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em um guia divulgado em abril deste ano, defende que crianças entre dois e cinco anos, por exemplo, podem assistir televisão por até uma hora por dia, e que até dois anos não deve haver contato com as telas.
O documento sugere ainda que ao afastar as crianças dos aparelhos, é preciso investir em jogos mais ativos, momentos de leitura e na qualidade do sono, promovendo desde cedo hábitos saudáveis que evitam, por exemplo, a obesidade infantil e sedentarismo.
O pediatra especialista em antroposofia, José Agop Manuchaguian, segue a mesma linha e, em uma entrevista ao programa Consultório CBN, ressalta que com o aumento da incidência de doenças neurológicas possivelmente relacionadas ao uso excessivo de aparelhos e mídias, é preciso atentar-se a dosar os momentos de contato com a tecnologia.
A presença e a mediação do adulto
Patrícia Grinfeld, psicóloga e co-fundadora da Ninguém Cresce Sozinho, organização que oferece serviços com foco na perinatalidade, parentalidade e primeira infância, argumenta que não é possível educar as crianças dentro de um mundo ideal, uma vez que as telas são uma realidade presente em diversos contextos da vida atualmente.
Se existem televisões em restaurantes, ruas de comércio, consultórios médicos e espaços para crianças, quando o assunto é aparelhos eletrônicos a incidência fica maior ainda: desde a tela do caixa eletrônico, passando pelo tablet onde um garçom anota pedidos no restaurante até os smartphones. Quem hoje não tem um telefone celular?
Entretanto, o grande prejuízo dessa realidade é, segundo Patrícia, a falta de mediação do adulto, não só no sentido de controlar o tempo e o conteúdo acessado – fatores igualmente importantes -, mas a indisponibilidade de estar junto para usar a tela com a criança. A psicóloga exemplifica: se antes o adulto cantava para o bebê e transmitia cultura enquanto conversava com ele, hoje liga um aplicativo que toca música. “Não é que a música não seja boa, mas dessa forma eliminamos a voz e a presença física de uma figura que acolhia e ouvia a resposta da criança”, explica.
Mas antes de discutir se pode ou não ou quanto tempo de tela é indicado para cada idade, é preciso dar um passo atrás e perguntar: por que oferecer as telas às crianças? “O adulto não precisa estar com a criança o tempo todo. Mas, momentos como antigamente, quando a mãe ia estender as roupas no varal e dava os prendedores ou vasilhas de plástico para o bebê brincar e conhecer o ambiente, estão sendo substituídos pelas telas. A criança precisa estar sozinha em alguns momentos. Mas sozinha não é estar na companhia da tela, é explorando sua imaginação, brincando, fazendo nada ou no ócio buscando o que fazer.”
É nesse sentido que a psicóloga afirma que a tela dá uma suposta segurança, porque a criança está entretida, não vai dar trabalho e o adulto pode seguir com seus afazeres. Dessa forma, ressalta a importância de, em um momento no qual a pessoa não pode estar presente porque está ocupada, possibilitar que a criança se ocupe de uma tarefa criativa.
Experiências recentes com famílias no âmbito da Ninguém Cresce Sozinho têm mostrado uma sobreposição de prejuízos frente a benefícios dos aparelhos. Patrícia afirma que basta deixar a criança livre e sem tela que ela cria. Mas, atualmente cresce o número de crianças que não conseguem mais inventar. “Elas ficam angustiadas porque é como se não tivessem esse repertório interno de inventar, de pegar uma caneta e começar a desenhar, ou brincar com um copinho, uma coisa simples.”
A introdução de aparelhos em momentos diversos do dia, como a televisão durante as refeições ou para a criança dormir, também apresenta efeitos negativos sobre os pequenos. “Há crianças que só comem na frente da TV ou tablet, em um momento que deveria existir uma relação com o alimento e a pessoa que a alimenta. Uma vez que entra a tela, devemos pensar no que perdemos em termos de relação, muito mais do que pensar no tempo de tela.”
O outro lado: desenvolvimento de habilidades motoras
Com essa reportagem, o intuito da Aliança pela Infância é mostrar que existem diversas linhas de pensamento e estudos sobre o mesmo tema. Apesar de as inúmeras pesquisas citadas acima indicarem que aparelhos eletrônicos em idades precoces são ruins para o desenvolvimento de bebês e crianças, a série da BBC “Babies: their wonderful world”, reproduzida semanalmente pelo Fantástico como “O maravilhoso mundo dos bebês”, indica que o uso de tablets por crianças muito pequenas pode sim trazer benefícios para o desenvolvimento.
O primeiro episódio da série (disponível neste link em inglês) mostra um experimento feito no Reino Unido com seis bebês: três deles usam tablets e os outros três não. Em testes rápidos como andar em linha reta, desenhar uma linha no papel e empilhar blocos em uma torre, aqueles que usam tablets saíram-se ligeiramente melhor nas atividades de desenho e de empilhar, mostrando que há uma possibilidade dos aplicativos e jogos eletrônicos ajudaram no desenvolvimento da chamada coordenação motora fina, responsável por movimentos de músculos pequenos, como das mãos.
*Imagem: Zap.aeiou