O que os povos tradicionais e manifestações culturais podem nos ensinar sobre brincar na natureza?

22 de maio de 2023

Vivências e saberes passados de geração podem nos ajudar a reconectar corpo, alma e ambiente

Por Camila Salmazio

Observe as linhas da palma da sua mão e as formas que elas criam. Agora tente buscar essas mesmas formas em uma árvore a sua volta, no vaso de plantas do quintal ou no céu. A brincadeira nos ajuda a perceber que podemos encontrar semelhanças entre a natureza e a gente, além de deixar os olhos mais atentos para essa importante conexão.

Uma pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Pediatria em parceria com o Instituto Alana dentro do Programa Criança e Natureza mostrou que brincar em ambientes naturais apoia todos os marcos de uma infância saudável, como a imunidade, a memória, a capacidade de aprendizado, a sociabilidade e a disposição física.

Quem faz essa conexão de corpo, natureza e a livre expressão há séculos são os griôs ou griots, como são chamados na África Ocidental, de onde vem essa manifestação cultural. São nomeados assim os indivíduos que detém o dom da palavra e transmitem saberes como histórias, canções e mitos do seu povo através da oralidade. 

No Brasil, o griotismo está presente em comunidades tradicionais como a de indígenas, quilombolas e ribeirinhos. São mestres e mestras da tradição oral, agricultores, capoeiristas, artesãos entre outros tantos ofícios que ajudam a preservar os territórios e a cultura popular. 

Nas vivências deles, a brincadeira se manifesta misturadas ao cotidiano. Em uma casa de farinha, por exemplo, uma senhorinha do interior da Bahia canta e dança junto com o movimento de rodar e moer o alimento que vai estar na mesa da sua família depois. 

Brincar é se lembrar de que somos parte da natureza e que essa conexão pode  potencializar a vida em múltiplos sentidos. Foi brincando, inclusive que, ainda menina, a educadora griô Lilian Pacheco reconheceu a vocação de ensinar. O quintal da sua casa virava sala de aula que, diferente dos moldes tradicionais, valorizava “o movimento e a alegria de cada ser humano”, como ela mesma conta.

Aquele exercício do imaginário da menina ajudou a compor o que hoje é a Escola de Formação da Pedagogia Griô, fundada em 2016 por Lilian e pelo companheiro Márcio Caíres, que também é mestre griô, na proposta de uma outra educação que valorize o vínculo com a ancestralidade e aprenda com os modos de vida das comunidades.

Ser griô é um dom que passa de geração em geração entre famílias, mas os elementos pedagógicos que compõem essa tradição podem ser aprendidos na escola de formação em Pedagogia Griô. É como aprender algo que não deveria ter sido esquecido como a possibilidade de se expressar livremente, contar histórias e de brincar.

Para Lilian, a sociedade se descolou da natureza durante o processo civilizatório que se agravou com a industrialização e a ideia de que os corpos servem apenas para trabalhar e devem seguir uma lógica que preserve energia para esse fim. O resultado desagua hoje em pequenos gestos como ter receio de pisar na grama, se incomodar com a areia da praia como se fosse sujeira e ter um sistema de ensino que tem como objetivo treinar as crianças apenas para sobreviver e concorrer no futuro mercado de trabalho. “Na nossa pedagogia griô, por exemplo, se você não sai melhor do que você entrou, mais forte, cheio de energia, com mais saúde e vitalidade, para nós você não aprendeu”, conta Lilian, que também é especialista em elaboração, coordenação e avaliação de projetos de educação, cultura, economia solidária e desenvolvimento sustentável há mais de 25 anos.

 

As vivências desses mestres e mestras nos dão pistas de que a conexão do brincar na natureza pode se dar nas pequenas coisas do dia a dia e que não tem idade para (re)começar.  É como se permitir “ser um pouco pedra” ou brincar de “roubar um vento”. E porque não aprender a “catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso.”, como nos ensina outro mestre, esse da poesia, chamado Manoel de Barros, que misturou suas experiências de criança, sua conexão com a natureza e o poder da palavra em poemas como “O menino que carregava água na peneira” um dos mais famosos dele, que me parece que conta o que acontece quando a gente ousa sair dessa lógica de desconexão tão comum atualmente: “Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!”

Exercício de ser criança

Nas comunidades indígenas é comum que as brincadeiras se misturem com os aprendizados de convivência com a natureza como coletar frutos e sementes, desenvolver instrumentos de caça e se banhar no rio. “ Eu pescava de linha, fazia pesca noturna de mergulho. Tive o privilégio de conhecer muitos passarinhos, muitas aves de rapina, árvores que usamos para fazer as casas”, relembra o escritor e músico indígena Cristino Wapichana que cresceu em meio ao bioma da floresta Amazônica e do Cerrado, nos campos naturais de Roraima. 

“As histórias também ensinam muito a gente. A minha tia viu uma sereia, por exemplo, em um rio próximo da comunidade, onde todos iam tomar banho. Ela, menina, ficou paralisada com aquilo. E de repente quando a sereia percebeu e olhou pra ela, entrou na água. Depois, minha tia teve três dias de febre. São histórias que cumprem a função de ensinar e falar sobre mistério, sobre magia e são carregadas disso”, afirma Cristino, que hoje tem o ofício de contar essas mesmas histórias que ouviu durante toda sua vida em livros como A Onça e o Fogo, publicado em 2009.

Hoje ele vive em São Paulo com a esposa, que não é indígena, e as duas filhas de dez e sete anos porque considera que está “no momento da palavra”, se referindo a seu trabalho de levar seu conhecimento para as pessoas das grandes cidades. Distante das matas que permeavam seu imaginário na infância, Cristino vivencia dilemas semelhantes aos de muitos pais e cuidadores, no desafio de aproximar as filhas da natureza.  

“Eu não quero que elas pensem que tudo vem do mercado. Elas gostam muito de morango, então vamos aprender como é que planta morango. Elas plantaram, colheram, viram como é a flor do morango, reconheceram a folha. Na hora que elas verem por aí, elas vão saber.”
O indígena compreende limitações de se viver em uma casa na cidade para o convívio das filhas com a natureza, mas reforça que é importante observar o que se pode experimentar. “Tem o maracujá, eu não espero que o maracujá aqui dê frutos. A gente consegue ver o fruto no mercado, mas ele dá uma flor para mim e eu estou feliz da vida porque elas vão ver uma das flores mais bonitas que se tem.”, relata ele sorrindo.

Os Wapichana entendem que a infância não é o início da vida, porque consideram que a ancestralidade os acompanha sempre. Por isso, que para eles, não faz sentido deixar de brincar em nenhuma fase. O mais importante, segundo ele, é saber fazer a leitura do ambiente à sua volta e o que ele pode te permitir. 

“É você conhecer esse lugar, conhecer a tua história, saber por que você está ali. Dependendo do lugar, saber o que você pode plantar e como ler o tempo, se vai chover, se vai fazer apenas frio.”, diz o escritor e afirma que esse mesmo exercício de conexão pode ser feito mesmo fora das matas. “Aqui [na cidade], as crianças fazem a leitura do semáforo, da faixa de segurança, do perigo e até onde elas podem ir, das pessoas à sua volta”, diz ele que recomenda  também não esquecermos de fortalecer o corpo físico. 

Corpo esse que na pedagogia griô guarda os saberes, a própria natureza e a  melhor fase da vida que é a infância. “A criança não é criança só até 10, 11 anos, né? A criança sou eu hoje aqui nessa idade. A criança é você. A criança está aqui. A gente precisa do movimento, a gente precisa da música, da brincadeira. A gente precisa dessa nossa encantaria humana de aprender com alegria”, finaliza Lilian. 

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