Inspirações e experiências

2021

Natureza, território e cultura de paz: como articular saberes e sonhar novos mundos?

19 de outubro de 2021

Se aprendemos com a natureza,  temos a possibilidade de perceber a beleza e o mistério dos processos naturais; conheça o projeto elaborado em uma escola paranaense para pensar a natureza como educadora 

É bem possível que você se considere uma pessoa apaixonada pela natureza, afinal, sentir a brisa fresca no final da tarde, a luz cálida do sol aquecendo os poros ou dormir com o barulhinho da chuva são verdadeiros deleites. Mas seria a apreciação suficiente para regenerar a Terra?

Para Satish Kumar, ativista indiano e fundador do centro internacional de estudos ecológicos do Schumacher College, tecer um vínculo mais íntimo com a nNatureza é uma semente pequena, mas potente para sonharmos um mundo mais justo, pacífico e harmonioso para todos os seres.

Em “Solo, Alma e Sociedade”, o autor pensa caminhos a partir dessa trindade. “Na Índia sempre se pronuncia a palavra paz no mínimo três vezes, porque a palavra paz tem dimensão interior, social e ecológica. Sem a paz interior não se pode chegar à paz exterior”, escreve.

E todas essas dimensões estão interligadas, afinal a concepção de natureza como algo que está “lá fora” e diferente de nós humanos desconsidera que somos parte interdependente de todo um ecossistema, que somos todos natureza.

“Ao praticar humildade e gratidão, é possível aprender muito com a natureza. Contudo, na nossa civilização antropocêntrica, aprendemos sobre a natureza”, comenta em sua obra.

Ao aprender “sobre”, transformamos a natureza em objeto e elevamos a espécie humana a um status maior em relação aos outros animais, florestas, rios e oceanos, levando-os à exploração. E o que é a violência se não retirar a subjetividade do outro?

Se aprendemos com a natureza, por outro lado, temos a possibilidade de perceber a beleza e o mistério dos processos naturais, conhecer a dança das estações e o tempo dos ciclos, criando assim um vínculo íntimo de humildade, reverência e interconexão com as espécies.

No início de outubro, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou um documento científico sobre o papel da natureza na recuperação da saúde e bem-estar de crianças e adolescentes durante e após a pandemia de Covid-19. Segundo as evidências dos estudos analisados, possibilitar o acesso de crianças a espaços naturais diversos e acolhedores pode contribuir com sua saúde emocional, física e cognitiva, além de fortalecer vínculos e conexões sociais.

O documento reforça ainda que aumentar o número de áreas verdes seguras e conservadas e distribuí-las de maneira mais equilibrada pelos territórios auxilia na construção de cidades mais sustentáveis, resilientes, includentes e solidárias.

Perceber que precisamos de algo que o outro pode oferecer é um passo importante para cuidar, preservar, mas acima de tudo conhecer. Conhecer seus detalhes, seus ritmos, seu tempo. E se reconhecemos o tempo do outro, fica mais fácil reconhecer também o nosso próprio tempo, ciclos e necessidades para o nosso bem-estar. 

Natureza como educadora

Brincar e conviver ao ar livre, de maneira segura e em contato com a natureza, faz parte de diversos marcos legais ligados à infância e é prioridade nas práticas da educadora social Odete Perdomo.

Cuidar da horta comunitária, conhecer as praças do bairro e brincar livremente com elementos da natureza faz parte da rotina de seus educandos e de toda a Escola Social Marista Irmão Acácio, que fica em Londrina, no Norte do Paraná. 

O espaço atende mais de 200 crianças e adolescentes de 6 a 17 anos em vulnerabilidade social pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). No contraturno escolar, as crianças participam de atividades lúdicas perpassadas pelas artes cênicas e visuais, jogos, tecnologia, brincar livre e, claro, natureza.

A proposta de pensar a natureza como educadora surgiu a partir de um projeto chamado EcoLógico, que tinha o objetivo de ecoar a lógica do cuidado consigo, com o outro e com o planeta.  A ideia era possibilitar espaços de interação com a natureza presente no território e de reflexão sobre as relações de interdependência entre tudo o que vive e existe. Todos os anos, o projeto ganha novo nome, em 2021 ele foi batizado de Estação.

“Nos aventuramos a ocupar as praças do bairro, alimentar os cachorrinhos de rua, criar comedouros para os pássaros habitantes do quintal da escola e começamos a cultivar a horta”, conta Odete. 

De fato, contemplar a natureza nos mostra o caminho da paz, pois prova que a cooperação é necessária para a vida existir. “Construir um vínculo emocional com a natureza é elemento fundamental para a formação de cidadãos verdadeiramente preocupados e engajados com pautas em defesa da biodiversidade do planeta, que questionem os atuais padrões de consumo e economia e busquem novas alternativas sustentáveis, e que exijam dos governantes planos de governo que promovam o cuidado com a natureza. Sem uma relação com a natureza de conhecimento centrado no encontro e no afeto, na integração e percepção da unicidade, não se cuida do planeta e não se transformam estruturas de poder”, afirma Odete.

Para Odete, a natureza educadora nos coloca neste lugar onde o planeta, os ecossistemas emanam sua vida e nos ensinam sobre viver e existir. “O meio ambiente está padecendo por nosso distanciamento dela e fechamento numa vida cada vez mais artificial, tecnológica e digital. Precisamos mudar de rumo enquanto humanidade urgentemente, precisamos nos conectar com o movimento da vida”, complementa. 

Semear gerações 

Na horta comunitária, que fica dentro da escola, as famílias se juntam às crianças no plantio, na colheita e nos outros cuidados. É uma forma de estreitar os laços entre gerações, resgatar os saberes rurais do território e conscientizar as crianças sobre a origem do que chega à mesa. 

Odete relembra que foi o Sr. Valdecir, colaborador mais antigo da escola e morador do bairro desde quando a região ainda era rural, quem compartilhou os primeiros saberes para a construção do espaço.  A horta foi um dos muitos caminhos possíveis. 

“Começamos de modo muito simples, plantamos as primeiras hortaliças direto da semente e foi aí que muitos educandos perceberam essa relação, de que a comida vem da semente e não do supermercado. Foi acompanhando esse processo de observação, vendo os efeitos da chuva, da seca, aprendendo, estando ali presente, descobrindo os animais daquele ambiente, que vivenciamos o que é a colaboração, a cooperação.” 

Para a educadora, o mais valioso é quando a criança leva essa experiência adiante. “Afinal, eles acompanharam esse processo de ver crescer, esperar, anotar no calendário o dia que plantou e o dia que foi colher. E há muito aprendizado nessa observação, fazendo, vendo os efeitos da chuva, da seca, descobrindo os animais daquele ambiente, a minhoca e sua importância naquele ambiente, a adubação da terra, e tudo mais”, conclui. 

Fotos: Giovane Sgarbossa

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