Como forma de provocar reflexões e inspirações sobre o processo de descobertas e aprendizagens da criança em todos espaços que ela habita, em 2020, o tema escolhido para a Semana do Aprender, organizada pelo movimento Aliança pela Infância, foi “O aprender encantado pela palavra” – que pode estar em diálogo com a linguagem verbal, gestual, imagética ou musical. Mas como explorar a leitura das artes na infância e favorecer ambientes e oportunidades que inspirem e encorajem as crianças para a leitura poética, valorizando a percepção e o contato com as maravilhas que elas enxergam, falam e fazem? Para falar sobre o assunto, Aliança pela Infância convidou Stela Barbieri, artista, educadora, escritora e contadora de histórias.
“Tem uma frase do Paulo Freire que fala que a leitura do mundo precede a leitura das palavras. E eu sinto que, muitas vezes, só valorizamos a leitura dos livros, sem considerar as várias leituras que já fazemos no dia a dia, sendo uma das primeiras o rosto de nossa mãe. E estas leituras todas, que são feitas com diversas camadas culturais e com nosso próprio corpo, trazem diversos níveis de compreensão daquele texto que está sendo dito, além de impactar as diversas leituras que vamos fazer de outros textos e suas entrelinhas, onde estão presentes todas as nossas experiências”, comenta Stela.
Ainda sobre as diversas leituras de mundo, ela menciona Daniel Munduruku, um autor indígena. “Ele conta que, quando jovem, não lia tantos livros, mas sempre gostou muito de ler a natureza, assim como toda a humanidade que, através dos tempos, aprendeu a ler muitos indícios, como o céu para se localizar, os ventos para se proteger ou mesmo as pessoas que lêem os destinos nas mãos, entre tantas outras possibilidades de leitura.”
Uma vez que somos construídos por múltiplas leituras, adentrar no universo das crianças respeitando seu tempo e individualidade exige valorizar sua potência para a invenção e a experimentação, algo que, para Stela, só é possível quando nos colocamos em “campos de presença”, ou seja, em espaços que nos fazem estar, de fato, entregues e presentes ao momento.
“A presença no que a gente faz é fundamental. Muitas vezes, com as crianças, ficamos numa “fazeção”, uma visão de que elas precisam estar ocupadas o tempo todo. E me parece que é importante que as crianças estejam, sim, envolvidas em um movimento existencial que as alimente, mas para que isso aconteça deve haver também um encontro de presenças, o ato de estar presente por completo, observando o encontro da criança no ambiente em que ela está, sua interação com objetos, com outros seres vivos, com o próprio corpo e com os adultos com os quais interage”, afirma.
Para a educadora, quando esta parceria de presenças se dá, torna-se possível abrir passagem para que questões existenciais venham à tona. “Quando fazemos algo muito no automático, prestando contas ou cumprindo uma lista de afazeres, impedimos que nossa percepção entre em contato com o que as crianças enxergam. Felizmente, à revelia da qualidade da nossa presença, as crianças continuam fazendo suas investigações e indagações sobre o mundo. Mas nem sempre percebemos e perdemos muito ao não reforçar a nossa presença.”
Há, ainda, uma persistente ideia da obra de arte e do museu como coisas distantes e inacessíveis do ponto de vista da compreensão, preconceito criado pelo próprio meio das artes como se a leitura e interpretação de uma obra tivessem que ser alvo de apreensão imediata, sem necessidade de uma formação. Quanto a isso, Stela Barbieri comenta as reflexões que têm feito sobre o estado da arte e o estado de ateliê.
“O estado da arte não é um estado restrito a obras de arte, mas ao deslocamento do sensível. Assim, é possível passar pelo estado da arte em um show ou em uma exposição, mas também em um encontro amoroso, ou em um diálogo com alguém, vendo a natureza ou lendo um poema. Da mesma forma, você pode passar por uma exposição sem que nada te aconteça”, salienta.
Neste contexto, para Stela, as crianças, muitas vezes, já têm essa disponibilidade para viver este estado da arte porque não têm tantos filtros e cabe a nós estabelecermos relações e fazermos as costuras entre as histórias que nos trazem. “Elas têm maior abertura para saber como as coisas do mundo acontecem e fazem perguntas espontâneas sobre tudo que suscita curiosidade, como por exemplo por que algumas flores são de uma cor e outras são de outra, perguntas que em si são existenciais e poéticas, e acredito que podemos aprender muito com elas”, conclui.
*Stela Barbieri é artista, educadora, escritora e contadora de histórias. Foi conselheira da Fundação Calouste Gulbenkian (2012-16) e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foi curadora educacional da Bienal de Artes de São Paulo (2009-14) e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake (2002-13). Foi assessora de artes na Escola Vera Cruz por mais de 30 anos. Também já coordenou o curso de Pós-Graduação em Museus e Instituições Culturais, do Instituto Singularidades. Atualmente, dirige o Binah Espaço de Artes, um ateliê vivo, com aulas, palestras e formações.