É cada vez mais comum encontrar entre famílias norte-americanas e europeias crianças e adolescentes que estudam em casa, educadas por professores particulares ou até mesmo pelos seus pais. A prática do ensino domiciliar, ou homeschooling, divide opiniões entre educadores e cuidadores e ganhou visibilidade ao virar pauta recentemente no Supremo Tribunal Federal (STF).
No dia 12 de setembro, dez ministros da corte decidiram que, com a Constituição Federal vigente, os pais e cuidadores não têm o direito de tirar seus filhos da escola para ensiná-los em casa. Na ocasião, somente o relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso, votou a favor da autorização da prática, contanto que requisitos mínimos sejam observados como por exemplo a notificação às Secretarias Municipais de Educação, para que haja um registro de crianças que estudam em casa. Segundo ele, a Constituição não proíbe a metodologia, e ressaltou que os pais teriam o direito de escolher a melhor forma de educar os filhos.
Dos dez ministros que participaram, sete argumentaram que a prática é uma possibilidade, mas que antes é preciso elaborar e aprovar uma lei que permita a avaliação do aprendizado e da socialização de pessoas que estudam em casa. Dois ministros votaram a favor da proibição total do ensino exclusivamente domiciliar, defendendo que o mesmo pode ser complementar, mas não deve substituir o ensino escolar.
Se no STF não há consenso, no cotidiano das famílias brasileiras, tampouco, o assunto está esgotado. Bruna Lima, revisora e tradutora, mãe de uma criança de sete anos, dá o tom. Ela diz que conhece o conceito, já pesquisou a respeito mas ainda não tem uma opinião consolidada. “Não estou acompanhando o debate no STF, soube pela imprensa que a proposta foi rejeitada, mas confesso que já considerei educar minha filha em casa.”
Apesar da ideia ter passado pela cabeça, desistiu. “Me preocupa o fato das crianças não terem o devido acompanhamento de profissionais especializados e a questão da perda de convivência [com outras crianças, educadores e outros profissionais do ambiente escolar]. Por outro lado, acho que se houver um programa de orientação pode ser algo benéfico às crianças, para que se desenvolvam em seu próprio ritmo”, conta.
O tema também divide opiniões mesmo entre especialistas. Entre os argumentos a favor do ensino domiciliar, lideram os posicionamentos que defendem o direito dos adultos de não optar pela educação escolar; a crença de que seres humanos são individuais e, portanto, têm necessidades diferentes; e a possibilidade de interação em espaços alternativos à escola, como parques; entre outros.
Atualmente, a Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned) calcula que existem cerca de sessenta processos sobre o tema em tramitação nos tribunais brasileiros. A instituição, fundada em 2010, promove a defesa do direito da família à educação domiciliar.
A organização define o conceito como uma modalidade de educação, na qual os principais direcionadores e responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem são os pais do aluno, o que proporciona maior amadurecimento, produz adultos seguros e com uma autoestima sólida – além de estimular o desenvolvimento da disciplina de estudo e estratégias de aprendizado.
Do outro lado, lideram os argumentos de que a garantia de educação básica obrigatória é dever compartilhado da sociedade, família e Estado; acesso a diferentes conteúdos oferecidos por diversos pontos de vista; valorização da escola como esfera mais ampla de sociabilidade; criação de pessoas incapazes de compartilhar problemas e desafios da sociedade se educadas em casa; risco de negligência do direito à educação garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre outros.
Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, defende a escola como lugar que possibilita a aprendizagem e desenvolvimento humano a partir do contato com o outro. “O acesso à educação na escola é importante do ponto de vista pedagógico para a formação do ser humano de forma integral, porque é na relação dialógica com a sociedade – e a escola é uma das instituições sociais – que aprendemos.”
Para endossar seus argumentos, cita também o artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que versa “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.”
Sobre o argumento de que outros modelos de aprendizagem podem fazer mais sentido aos alunos, Andressa defende que uma meta a ser alcançada é uma escola pública que converse com cada estudante. “Queremos que os professores sejam bem formados para que possam dialogar com a realidade e a individualidade de cada aluno e adaptar a educação dentro de sala de aula e da escola para a realidade daquela turma. Eu conheço várias escolas públicas que fazem isso: pensam na individualidade e também no coletivo, o que por exemplo uma educação domiciliar carece de referências, até porque a criança vai ficar mais isolada dentro da casa dela.”
A coordenadora ressalta que o grupo não é contra o aprendizado da criança em outros espaços, como em casa com pais e responsáveis e em outros lugares. Mas vai contra a educação sendo exclusivamente em casa. “A educação passa por processos de sociabilidade, de relação, de um trabalho que é de diversas culturas. Então quando a criança está só dentro do espaço familiar, ela não tem acesso a toda essa gama de diversidade e de convívio social com o diferente, que é o processo de estar dentro da escola.”
Segundo ela, pais e responsáveis podem exercer sua liberdade sobre a educação dos filhos ao escolher qual escola melhor se encaixa às suas crenças e desejos. Esse mesmo argumento é usado por Ana Rosa Moreira, membro do núcleo da Aliança pela Infância de Juiz de Fora e professora do curso de pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Eu acredito que a família tem o direito de escolher a escola, de trabalhar junto e estar presente dentro dela. A grande maioria da população não terá como optar por colocar ou não a criança na escola e apostar na educação domiciliar. Essa escolha valoriza muito o individualismo. Temos que brigar por melhores condições para as escolas públicas, um direito de todos, e não ficar pensando em ações fragmentadas e isoladas.”
Assim como Andressa, Ana Rosa defende que, apesar da escola não ser o único lugar das interações, brincadeiras e aprendizados das crianças, é um espaço que facilita esses processos. “Geralmente os pais ou responsáveis estão trabalhando, então como essas crianças vão para uma pracinha? Além disso, são poucas as praças [disponíveis à população na maioria das cidades brasileiras], os espaços públicos [de lazer] são muito restritos. A escola acaba sendo um lugar privilegiado nesse sentido. Todos nós somos seres singulares. Essa individualidade é formada desde que a gente nasce até quando morremos a partir da relação com o outro.”
Nem em um polo, nem em outro. A mãe, profissional liberal e moradora da cidade de São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo, Bruna continua ouvindo os dois lados, buscando seu próprio caminho (e dentro da lei). “Acredito que a escola é um espaço de construção – ou desconstrução – social, como o são também as associações e a comunidade em si. De qualquer forma, acho que toda criança deve ter o direito ao acesso a uma boa educação [seja na escola ou em casa], convivendo com outras crianças e com a comunidade.”
Debate polarizado
Anteriormente à realização dessa matéria, demos início a uma discussão sobre o tema ensino domiciliar no grupo de WhatsApp com membros dos diversos núcleos da Aliança pela Infância espalhados pelo Brasil. O debate trouxe muitos insumos que estão presentes em diversas passagens do texto, e também nos ajudou a entender um pouco mais da visão daqueles que são contra o homeschooling e os que são a favor.
A seguir, listamos alguns dos principais pontos levantados por cada lado. Tomamos o cuidado de não revelar o nome dos profissionais; o que interessa é expor as opiniões e dar continuidade à discussão. Confira:
Favoráveis ao homeschooling:
Contrários ao homeschooling:
Foto 1: Crédito: iStockphoto/Getty Images.
Foto 2: A arquiteta Emília Lourenço, que tirou a filha Clarissa da escola há dois anos, foi entrevistada pelo Correio Braziliense e defende a regulamentação do ensino domiciliar. Crédito: Correio Braziliense.
Foto 3: Crédito: Getty Images.