Brincar entre o céu e a terra: a SMB 2020 e a pandemia do coronavírus

14 de abril de 2020

Um dos pilares de ação da Aliança pela Infância é a realização anual da Semana Mundial do Brincar (SMB), uma mobilização em nível nacional e internacional que convida pessoas que envolvem-se com crianças e/ou temáticas a elas relacionadas para pensar, celebrar e promover a importância do brincar livre no desenvolvimento integral do ser humano. 

A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) obrigou a adoção de medidas que impactaram o que até então era tido como normalidade. Aulas foram suspensas, escritórios passaram a funcionar em rodízio ou regime de home office (trabalho em casa), parques e praças foram fechados e a circulação de pessoas foi reduzida. 

Por isso, em 2020, a SMB não convocará eventos coletivos, mas chamará atenção para a brincadeira com segurança e afeto em espaços domésticos. Para entender melhor como acontecerá a articulação entre o tema da Semana e o incentivo à exploração de possibilidades de brincadeiras dentro de casa, a Aliança pela Infância conversou com Letícia Zero, coordenadora da Secretaria Executiva da Aliança. Confira abaixo. 

Aliança pela Infância: Brincar entre o céu e a terra é o tema da SMB 2020. A que a Aliança se refere quando faz alusão a esse enorme espaço? 

Letícia: O conselho da Aliança já tinha mais ou menos uma ideia do que queria tratar na SMB 2020 e, considerando contribuições dos núcleos, começamos a conversar sobre trazer a questão da imaginação e devaneio da criança para o tema da Semana, e a importância de ter um espaço para falar sobre a necessidade dela ter esse momento, que nem sempre está ligado à ação concreta. Queríamos olhar para como a imaginação acontece durante o brincar e como é importante que criemos espaço para isso na infância. Ao mesmo tempo, não queríamos falar de um imaginar desconectado da ação e sim abordar como a imaginação e o devaneio alimentam o ser e o estar no mundo da criança. Esse imaginar que é um pouco abstrato e como isso se conecta com a ação com o ser e estar da criança no mundo. Daí veio a alusão ao céu e a terra, o brincar entre a imaginação e ação. Outro grande motivador para a escolha do tema foi o aniversário de 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, de alguma maneira, traz um pouco da abordagem da Aliança. Nós falamos sobre o direito ao brincar pelo viés da subjetividade e do encantamento. Quando olhamos para o ECA e pensamos que é um instrumento para defender a criança como um sujeito de direitos, foi uma maneira de trazer um aspecto do Estatuto e celebrar a importância de a criança ter na infância e no brincar elementos que a tornam um sujeito singular.

 

API: É possível fazer uma relação entre o tema e o período vivido em nível mundial, onde milhões de crianças estão reclusas em casa devido à suspensão das aulas?  

Letícia: Sim e não. Sim porque, se pensamos que o brincar da criança está em todo o lugar e ela brinca o tempo todo uma vez que o brincar é sua linguagem e seu modo de habitar o mundo, então o brincar vai estar na sala de casa, no quarto, vai estar quando ela está deitada na cama. Nesse sentido, ele está em casa na quarentena e temos que olhar para a singularidade da criança nesses momentos também. Mas não existe uma relação tão direta no sentido que essa é uma questão específica desse momento da quarentena, é algo que está no brincar da criança em todo o momento.

 

API: Qual é o papel da imaginação nesse contexto de pandemia? 

Letícia: Devemos olhar para a criança como ela é agora. Ela não é um futuro adulto ou um ser que está em treinamento para quando ficar mais velha. Assim como adultos têm obrigação e responsabilidade de lidar com esse contexto, a criança tem papel de lidar com o que está sentindo e o que é compartilhado com ela à sua maneira de lidar com o concreto em volta. Não é porque ela não tem responsabilidade de ordem prática que esse momento está sendo leve. Ela percebe o que está acontecendo e sente as tensões. Costumamos falar que o brincar tem um fim em si mesmo. Então a criança não brinca para imaginar e elaborar o que está acontecendo na situação da pandemia. Mas poder imaginar e brincar vai ajudá-la a organizar o que está acontecendo ao mesmo tempo em que dialoga com o mundo e com os acontecimentos. 

 

API: Como a Aliança precisou adaptar a proposta da SMB considerando esse cenário de isolamento social? 

Letícia: Chegamos a considerar adiar a Semana, pois entendemos que alguns grupos que sempre se envolvem não conseguirão participar, como as redes de escolas e secretarias de educação. Além disso, a SMB não vai acontecer em praças, parques e na avenida da praia, já que essa proximidade é desaconselhada. Em determinado momento, chegamos a conclusão que a Semana não é uma série de eventos, e sim uma campanha de sensibilização sobre a importância do brincar e a questão do direito da criança a ter infância. Então não faria sentido suspendê-la. Suspendem-se eventos e não a sensibilização. Concluímos que será um esforço de pensar em mobilizações diferentes das que realizamos. De uma certa maneira, a SMB não mudou. Nós ainda lançaremos um chamado para que pessoas que se sentem parte dessa importância de sensibilizar a sociedade para importância do brincar realizem atividades para seus públicos e se engajem durante a última semana de maio, mas que essas mobilizações possam acontecer com segurança nesse contexto. Pode ser brincando na sala de casa, uma blogagem coletiva, live de contação de histórias, programas de rádio sobre brincar. São muitas as possibilidades e todo mundo terá que ser criativo, porque o importante é que a criança nunca para de brincar. Assim como não podemos pausar o brincar até depois da quarentena, não podemos pausar a SMB. 

 

API: Um assunto delicado é o uso das telas por crianças. Especialistas indicam que o uso não deve acontecer até os dois anos de idade. Qual é a visão da Aliança sobre esse assunto considerando que pais, mães e responsáveis estão tendo que lidar com trabalho remoto, tarefas domésticas e suspensão das aulas? 

Letícia: Estamos vivendo um contexto diferente. Não podemos olhar para uma situação que nunca vivemos com as regras que sempre tivemos. Temos que olhar para a realidade que famílias estão vivendo dentro de casa e tentar chegar na essência do que é importante para criança, de forma a viabilizar isso para os dois lados. É importante que a brincadeira sempre aconteça no concreto. Usar a tela não é de todo ruim se algum adulto está realizando uma mediação de qualidade. Se a tela é um meio mas a brincadeira está acontecendo no concreto, é muito diferente de dar o celular para a criança e falar ‘brinca’. É diferente ter uma pessoa facilitando brincadeiras pela tela e dando ideias para as crianças brincarem com objetos que têm em casa. E é interessante que isso aconteça depois dos dois anos porque, até essa idade, as crianças se divertem com qualquer conjunto de objetos. Mas mesmo assim, ninguém precisa sofrer. Nesse momento, devemos olhar para o que é possível para possibilitar a melhor infância para a criança, e o possível vai ser diferente pra cada um. 

 

*Imagem: Pixabay/Tumisu 

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