A alimentação na infância como um rito de alegria

14 de agosto de 2024

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Carol Scorse

Para muitos pais, a jornada da alimentação pode ser dura, fonte de angústias, e resultar em crianças que comem mal. Especialistas no tema são categóricos em afirmar que a culpa, no entanto, não é da família, mas da atual cultura alimentar. 

Desinformação, apelo da indústria de alimentos ultraprocessados com  condescendência de pediatras, falta de tempo, distribuição desigual das tarefas de cuidado, e por fim a culpa pelo filho que não come bem, abalam a confiança das famílias e, muitas vezes, afastam a família do momento da refeição como um momento de união, encontros e cuidado. 

A amamentação é o ponto de partida, com um papel essencial não só na nutrição do bebê, mas também na construção de laços emocionais profundos entre mãe e filho. Depois, vem a introdução alimentar e uma nova fase de descobertas, inclusive no processo de construção de identidade e personalidade. Neste momento, o pediatra Daniel Becker afirma que ao trazer a criança para o enredo da alimentação fora do peito, é preciso construir um ambiente alimentar saudável. Ou seja, a hora de comer deve, segundo o pediatra, ser um momento prazeroso. 

“Isso é sobre o que já se fala: a criança não quer comer, não força. A pressão vai fazer ela ter uma relação neurótica com a comida, e virar aquela criança que tem problema com texturas, restritiva com os alimentos, que não experimenta nada. A hora de comer tem que ser rápida e alegre. Sem tela, sem muleta, feita junto, em família. É momento de conversar, colaborar, descobrir coisas novas, se satisfazer”, explica o pediatra. 

Para isso, Becker recomenda que as famílias e a comunidade estimulem que a criança tenha uma relação ativa com a alimentação. Isso significa conhecer os alimentos antes deles irem para a panela e para o prato, pegar os alimentos com as próprias mãos e acessarem a cozinha. 

Mas nada disso a criança pode fazer sozinha nos primeiros anos de vida, e por isso também todo o ecossistema do ato de comer deve ser experimentado coletivamente. Além disso, paciência, tempo, respeito e comunhão são dimensões do afeto e da relação de confiança que se atravessa com o momento de comer. 

“A hora de comer deve ser leve e bem humorada, e de preferência rápida. Nesse processo, um bom aliado da família é a fome. Os pais têm que ter a coragem de respeitar a hora da refeição ao invés de tapar o buraco com comidas cheias de açúcar e sal”, defende o médico. 

Essa postura é especialmente desafiadora diante de uma engenharia alimentar sofisticada, onde os alimentos processados e ultraprocessados se tornam irresistíveis à custa de elevada presença de sal, açúcar e gordura. Uma receita que, associada à voracidade e pouca regulação da publicidade, se tornou uma fórmula para escravizar o pedalar de crianças e adultos. 

Comer como experiência coletiva 

Compartilhar uma refeição composta de alimentos cultivados, produzidos, distribuídos e preparados com carinho fortalece laços no presente e inspira esperança para o futuro. 

O paladar e os hábitos das crianças, no entanto, não serão moldados apenas pela experiência das crianças em casa. Comer junto significa comer com os avós, com os primos, e principalmente com os colegas da escola, local onde a refeição é sempre pensada e vivida a partir do grupo. Mas será que as escolas estão preparadas para propor uma alimentação ativa e coletiva para os alunos? 

O projeto Cozinhas e Infâncias realizado pelo Instituto Comida & Cultura provoca profissionais da Educação e comunidade a refletir sobre alimentação saudável, cultura e meio ambiente. 

Presente em escolas públicas de São Paulo (SP) e da Chapada dos Guimarães (MT), o projeto leva formação para professoras, cozinheiras e toda a comunidade sobre o tema. 

A expectativa é que esse conhecimento seja replicado para as crianças da Educação Infantil, tudo a partir do olhar pedagógico para os alimentos desenvolvido durante a experiência formativa. 

Para isso, segundo Ariela Doctor, uma das fundadoras do Instituto, a criança é colocada como sujeito, o alimento como objeto, e o Brasil como espaço. 

“A criança aprende com a imitação, e há uma fase que o maior encorajador dela é outro amigo. Se ela vê um colega comendo algo, ela vai querer no mínimo experimentar. Essa experiência coletiva entre eles é extremamente rica, eles aprendem a esperar o outro, se acalmam das brincadeiras e conversam, observam as personalidades, replicam, repetem e ampliam o repertório alimentar”, afirma Ariela. 

Incentivar o consumo de alimentos saudáveis, especialmente em uma era de produtos embalados, processados e ultraprocessados, é essencial para que as crianças alcancem seu pleno potencial de desenvolvimento. Porém, embora a educação alimentar e nutricional esteja prevista em lei, há muitos desafios para sua implementação no chão da escola. A pouca familiaridade dos educadores com o tema é um deles.

A premissa da estratégia pedagógica do programa, segundo Ariela, é a perspectiva inclusiva e decolonial da história da alimentação humana e da cultura culinária brasileira. 

“A comida foi terceirizada em todas as suas etapas; desembalamos mais que descascamos. Precisamos resgatar nossos saberes, nossa cultura, nossa ancestralidade, que é profundamente ligada à terra e a colaboração”, afirma a diretora do Comida e Cultura, que também é professora. 

Nunca é só comida 

A alimentação tem papel fundamental em todas as etapas da vida, mas especialmente nos primeiros anos, decisivos para o crescimento e desenvolvimento, e também para a formação de hábitos e manutenção da saúde ao longo de toda a vida. O ato de comer garante às crianças a chance de viver uma infância plena e digna, permitindo que continuem sonhando juntas.

E se refeição não se faz só, Becker e Ariela são unânimes ao eleger o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos o melhor companheiro na hora de garantir na prática uma alimentação adequada e saudável no início da vida. 

O guia é um documento oficial do Ministério da Saúde alinhado ao Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014. Ele traz recomendações e informações sobre alimentação de crianças nos dois primeiros anos de vida com o objetivo de promover saúde, crescimento e desenvolvimento. 

O ato de se alimentar tem muitos significados. O guia explica, por exemplo, que come-se não somente para saciar a fome, mas também por se estar feliz, triste, ansioso, solitário, entre outros tantos motivos, e que esse estado de humor pode ser ressignificado  quando colocamos o alimento como uma deixa para o encontro com o outro. 

“Alimentar é um ato cultural que envolve relações, hábitos e formas de preservar e transmitir tradições e conhecimentos. Faz parte da alimentação adequada e saudável o consumo de alimentos e preparações ligados à história da família, comunidade e/ou etnia, e da região em que se vive”, diz o guia. 

De fato, é fundamental promover uma alimentação diversificada e incentivar a exploração sensorial de diferentes sabores e texturas, respeitando sempre a relação da criança com a comida e seu corpo, enquanto ela descobre seus próprios gostos.

Por isso, o documento é o que Ariela chama de a “bíblia do Cozinhas e Infâncias”. “É na cozinha que nos encontramos e nos reencontramos com as histórias das nossas avós, da nossa cidade, da nossa comunidade. E isso nos dá noção de pertencimento, de segurança, de aconchego. A cozinha é um lugar de afetos e a mesa é lugar autoconhecimento”, conclui Ariela. 

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