Inspirações e experiências

2024

Abastecer a ‘caixa de ferramentas’ de emoções da criança é a melhor maneira ensinar a auto regulação

7 de outubro de 2024

Episódios de choro excessivo e explosões são comuns na primeira infância e devem contar com o apoio dos cuidadores

Por Camila Salmazio

Já anoiteceu, você chegou do trabalho, buscou seu filho na escola e teve que ir ao mercado comprar os ingredientes que faltam para o jantar. Seu filho, cansado de um dia de atividades, começa a pedir coisas em cada corredor e tem uma explosão de raiva, com gritos e choro quando você diz que não vai poder levar o que ele deseja. 

Por mais que essa situação possa causar desconforto a todos os envolvidos, a desregulação emocional é algo que pode acontecer com a maioria das crianças na primeira infância. Apesar disso, esse tipo de comportamento acabou ganhando rótulos como birra ou manha, além de ser percebido como sinônimo de uma criança mimada. 

“A desregulação acontece porque o cérebro da criança ainda não está maduro. Ela não tem todas as ferramentas para lidar numa situação de raiva ou de outro sentimento que funciona como gatilho para ela”, explica a Neri Nunes, psicóloga clínica com abordagem acolhedora baseada na Terapia do Esquema e Gestora Social com experiência na pautas sociais e direitos humanos.  

De acordo com a ciência, nessa fase da vida o corpo já está pronto para detectar ameaças, mas não consegue responder a elas de forma racionalizada. 

Para a mestra em psicologia clínica pela pela PUC-Rio, Cíntia Aleixo, é importante refletir sobre situações de desregulação antes mesmo delas acontecerem. “Nós adultos não pensamos a criança, nós a observamos. E tem muita diferença entre as duas coisas”, aponta a especialista. Ela conta que na maioria dos casos que recebe na Clínica do Bebê, um de seus projetos, os pais acabam conseguindo descrever a sensação e  as ações da criança desregulada, mas muitas vezes não conseguem entender a motivação daquele comportamento.

Essa dificuldade dos adultos é comum, já que a criança nessa fase não consegue dizer com clareza o que a levou a ficar aborrecida,  por não ter a linguagem totalmente madura. Mas Cíntia garante que é possível usar outros recursos para apoiar os pequenos. 

“Acho que a gente fala aqui sobre respeito, que é muito recente na nossa sociedade quando se trata desse público. E quando você respeita a criança, consegue pensar nela enquanto ser humano”, diz ela e acrescenta: “um adulto, muitas vezes, precisa de uma ajuda para se regular, mas pensamos que a criança não precisa”, aponta a psicóloga sobre supostas técnicas que incentivam deixar a criança sozinha ou ser vencida pelo cansaço do choro excessivo. 

Por onde começar

Ajudar a construir a tal “caixinha de ferramentas” das emoções para que a criança consiga se auto regular em momentos de conflito depende de “repertório familiar e social” ou seja, “aquilo que a criança presencia, observa, aprende e que vai repetir quando for necessário”, explica Neri. 

Os pais podem ajudar a criança a reconhecer os sentimentos que acessa no momento da desregulação. “É importante para ela perceber o que está acontecendo com o corpo dela, se o coração está acelerado quando sente ciúmes, por exemplo.”

Uma maneira de fazer isso é ir nomeando os sentimentos em meio às conversas do cotidiano. Perguntar o que ela sentiu quando está contando algo que viveu na escola ou viu em um filme também pode ser bastante efetivo para a descoberta de novas emoções.

“Na psicanálise, quando a gente volta numa história, não é somente pra ouvir. A gente volta para que a outra pessoa se perceba naquele conto dela.”, diz Cíntia. “Enquanto está recontando, ela está recriando e repensando, percebendo as habilidades que teve, para que na próxima oportunidade ela consiga se sair melhor.”

E por mais que os pais acabem se envolvendo emocionalmente e tendo sentimentos genuínos como raiva ou tristeza ao ver o filho em um momento de explosão, é importante respirar fundo e manter a calma para conseguir apoiar a criança. 

Vale sair da cena, dar uma respirada em outro lugar e pedir para outro adulto intervir. Porque às vezes a mãe ou pai que está junto também acaba desregulando”, conta Cíntia. 

A regulação também tem a ver com o corpo, explica a psicóloga. “Existem atividades que a gente consegue fazer rápido, como uma respiração que ajuda a trazer de volta a atenção para o presente”, orienta Cíntia.

Ajudar a criança a ir percebendo as partes do corpo em forma de brincadeira também pode ajudar a tirar o foco do que causou a desregulação. 

Validar o que o menino ou a menina está sentindo, sem julgamentos, é algo essencial para garantir que eles mantenham a confiança em expressar os sentimentos.“Contar uma história de forma lúdica também é uma boa opção para a criança entender que isso acontece com todo mundo”, sugere Cíntia que reforça que as consequências da falta de cuidado com os sentimentos das crianças, principalmente no momento da desregulação, podem ter impactos no desenvolvimento, refletindo na vida adulta. 

 

A desregulação em crianças atípicas

“A garantia da paz, em casos de crianças neuro divergentes, tem que ser ampliada para a família”, aponta Neri, que é especialista em neuro divergência e além de atender as crianças, trabalha com rodas de escuta de pais de atípicos. 

“Eu observo a sobrecarga emocional desses pais, que muitas vezes não tem a quem recorrer. Então, o apoio em grupo, ter espaço para falar sobre si e não só da criança é imprescindível”, garante.

Diferente de uma criança típica, a pessoa neuro divergente pode precisar de um suporte maior para entrar em contato com as emoções ou se auto regular. Em ambientes sociais, a psicóloga afirma que o melhor é permitir que a criança tenha interações sem grandes interferências dos adultos, para fazer desses espaços “um laboratório para tentar usar a caixinha de ferramentas dela”.

Neri também é mãe de uma  criança autista e conta que nem sempre é simples ver a criança ter dificuldades sem intervir.  “Porque como adulto genitor daquela criança você quer intervir e mediar para que dê certo”. Mas, segundo ela,  ter essas experiências de autonomia ainda na primeira infância é essencial para que a criança neuro divergente treine seu sócio emocional: “ela vai ganhar tolerância, resiliência e será capaz de lidar melhor depois dos 7 anos, quando é comum que a criança busque interagir mais com os ambientes e pessoas.”

Cíntia Aleixo reforça que é importante adequar as expectativas quando se trata de crianças atípicas. “Pode ser que a gente não consiga fazer 30 segundos de respiração, só dê cinco segundos. Pode ser que não dê pra retomar o assunto com a criança depois. Então, é importante compreender que por ser uma demanda diferente, o que vem também é lucro e que existe a possibilidade do controle sim e quanto mais cedo começar, melhor.”

A psicóloga afirma que a melhor maneira de garantir esses cuidados é com o apoio de profissionais experientes “porque a escuta e o amparo vão ser mais efetivos e os pais vão conseguir se perceber nesse processo, porque a desregulação pode vir também dos deles por conta das dificuldades que isso envolve”. 

Apesar de crianças neuro divergentes serem cuidadas quase que exclusivamente pelos pais e especialistas, Neri afirma que todas as pessoas, ao presenciar uma desregulação emocional, podem contribuir. “Mas você não intervém com a criança, você pergunta aos cuidadores como ajudar de uma forma muito acolhedora e respeitosa”, orienta.

A psicóloga, defende a formação e a preparação dos espaços públicos e privados, como shoppings e cafeterias, que recebem pessoas neuro divergentes. “A gente tem diversos casos de crianças que se desregularam em locais públicos, foram filmadas e expostas porque ninguém sabia como lidar. Os pais acabam tendo que lidar com o cansaço, o ambiente e a crise da criança ao mesmo tempo”, denuncia. 

Buscar informações qualificadas sobre esse público, para além de posts nas redes sociais, é uma maneira de contribuir para a diminuição de preconceitos. “Temos um longo caminho, mas a questão é não parar de caminhar”, finaliza Neri. 

 

Como falar sobre sentimentos com a sua criança?

Emocionário: diga o que você sente
O livro é uma espécie de dicionário das emoções que nos convida a conhecer e ampliar o repertório, assim como também ajuda crianças de todas as idades a identificar suas emoções. As ilustrações são um presente a parte e ajudam muito a explicar cada sentimento. 

 

Flutuar, da Pixar

De uma maneira sensível, o curta metragem mostra a angústia do pai ao perceber que somente o filho dele flutuava e era “diferente” das outras crianças. Em uma jornada difícil, o pai escolhe isolar a criança em casa e colocar pedras em sua mochila para não flutuar, até perceber a felicidade nos olhos do filho ao se sentir livre para ser quem é. 

 

Mundo Bita – Sinto o que sinto

A música animada incentiva a criança a reconhecer os seus sentimentos através da história do menino Dan, personagem do clipe que mostra os vários sentimentos como raiva, amor, inveja, que podem ser sentidas por qualquer pessoa. 

 

O Monstro das Cores

Numa percepção mais lúdica sobre o sentir, o livro associa cores aos sentimentos, como uma forma de ajudar a criança a identificar e expressar o que está sentindo. O livro incentiva que durante a leitura, a criança ajude o monstro, personagem principal, a organizar suas emoções que acabaram se misturando. 

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