Ações em prol da criança e do adolescente são efetivas se realizadas em conjunto entre as esferas de poder
Camila Salmazio
O brincar ainda é considerado algo de menor importância dentro dos direitos das crianças e adolescentes, avalia a advogada Fabiana Moraes, doutora em serviço social pela PUC São Paulo. “A gente não tem um dispositivo como o da educação, por exemplo, que obriga os pais a matricular e levar a criança para escola”, comenta, “mas deveríamos ter algo assim que garantisse também o brincar”.
Por ser algo que acontece primeiro na esfera privada, dentro dos lares, ainda é difícil mensurar como e o quanto as crianças brasileiras exercem esse direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “A quem acredite que uma criança que está vendendo bala no farol e, no intervalo entre os carros, corre, pula, está brincando”, explica a pedagoga e mestre em ciências sociais da educação, Ana Claudia Leite, assessora de educação e infância do Instituto Alana.
Garantir o brincar pleno dos meninos e meninas requer algo semelhante às engrenagens de um relógio. Cada uma delas tem uma função específica para que os ponteiros marquem as horas. Na Semana Mundial do Brincar, a Aliança pela Infância te convida a refletir quais rodas precisam girar para garantir essa expressão e quem são os atores responsáveis.
O Censo Escolar de 2022 mostrou que das 74,4 mil creches públicas e privadas brasileiras, 64% não têm parques infantis. Faltam também adequações em praças e parques públicos para que sejam seguras e convidativas para o brincar. “A gente sabe que o melhor amigo do brincar é os elementos naturais: a terra, a água, a madeira, a pedrinha. São brinquedos que dão suporte para a imaginação criadora da criança”, explica Ana Cláudia sobre elementos que podem ser encontrados nesses locais e muitas vezes significa o único contato com a natureza que algumas crianças têm.
Garantir que a cidade seja um espaço acolhedor para as crianças requer ação coordenada de várias esferas do poder público. Um exemplo é o Programa São Paulo Carinhosa, criado em 2013, que buscou tornar a cidade mais apropriada para crianças, com ações de todas as secretarias do governo. As medidas implementadas, como o bloqueio de carros na Avenida Paulista aos finais de semana, não estavam necessariamente voltadas ao brincar, mas garantiram uma melhor ocupação da cidade por meninos e meninas e suas famílias.
A pedagoga Ana Claudia acredita que o caminho para que a engrenagem governamental funcione bem é envolver a comunidade nas ações de zeladoria urbana e considerar a cultura do território ao “pensar políticas que estão em diálogo com o local, o fortalece o brincar das crianças ao se sentirem mais convidadas quando elas vão numa pracinha que é diferente da outra e propõe uma maneira diferente de ocupar aquele espaço”.
A advogada Fabiana lembra que o brincar não é somente direito fundamental da criança, mas também do adolescente. Em seu doutorado ela estudou os menores de idade que estão cumprindo medidas socioeducativas, e conta que a sociedade e o Estado entendem que, por terem cometido um ato infracional, esses jovens já não precisam mais de mecanismos de proteção, os afastando ainda mais do brincar.
O exemplo não é o único, de acordo com a advogada o mesmo acontece com meninas que engravidam na adolescência, que corresponde atualmente a 14% delas com idade entre 14 e 19 anos. “Além da violência que a menina sofreu, porque não podemos aceitar que ela consentiu uma relação com essa idade, ainda retiramos as proteções legais que devem ser garantidas até os 18 anos, por ela ter praticado sexo”.
É comum ter também uma ruptura com o brincar na escola nessa fase da vida. Após os anos iniciais, a grade curricular pensada pelo governo federal, estadual e municipal passa a ser ocupada com disciplinas e aprendizados considerados necessários para o futuro dos jovens no mercado de trabalho. Mas, “é na brincadeira que ela tem um lugar de desenvolvimento, de se conhecer e elaborar as nossas emoções”, reforça Ana Cláudia, que entende que é possível fazer diferente.
A pedagoga acredita que temos boas legislações no Brasil que priorizam e reconhecem o brincar da criança. O que falta, na avaliação dela, é a execução das políticas, principalmente de modo a garantir equidade social, e que alcance as infâncias que são mais vulneráveis: “Precisamos de políticas mais específicas que trabalham para atender aqueles que mais precisam primeiro, falta um refinamento dentro do âmbito municipal e estadual e a unificação desses dados.”
Desde o fim de 2023, a Central Única das Favelas (CUFA) disponibilizou sua sede no Complexo da Penha, que reúne 13 favelas na zona norte do Rio de Janeiro, para que as crianças da região possam brincar.
O local é marcado pela insegurança de operações policiais contra o tráfico que já vitimaram menores de idade.
Já a organização social Cidade Ativa criou o guia Comunidades do Brincar com soluções replicáveis em todas as regiões do país para tornar os espaços públicos mais apropriados às crianças, principalmente em lugares mais vulneráveis.
Ações espontâneas da comunidade também são importantes no local de convivência da criança. Na Semana Mundial do Brincar, organizações, coletivos entre outros grupos exercitam esse papel ao pensar atividades que impulsionam o brincar. Elas podem ser consultadas aqui.
No entanto, a advogada Fabiana afirma que o papel da sociedade pode ser ainda maior. Dentro da engrenagem que garante o brincar, os cidadãos, reunidos em grupos ou não, são responsáveis pelo controle social e devem fiscalizar se os direitos estão sendo realmente garantidos para todos os menores.
“As organizações da sociedade civil, do terceiro setor, pessoas físicas ou coletivos também devem fazer parte das decisões”, como está previsto no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Mecanismos como os Conselhos Municipais e Estaduais, plebiscitos, consultas públicas são algumas dessas ferramentas que garantem a participação popular, inclusive dos jovens, nas decisões.
Em tempos de grandes estímulos proporcionados pela tecnologia e por brinquedos que praticamente funcionam sozinhos, o tempo se tornou um item precioso. “Se todo o tempo dela for preenchido com atividades dirigidas ou que tenham finalidades específicas, vai comprometer o tempo para que essa criança brinque”, explica Ana Cláudia, que defende que as famílias pensem e criem juntas rotinas que favorecem o brincar espontâneo.
A pedagoga também reforça a importância de se ter um adulto de referência para a criança. “Ele [adulto] não está necessariamente brincando, mas está ancorando esse brincar. É alguém que ela pode se remeter quando precisar e entender que está em um ambiente seguro.”
Para a advogada é muito importante que as famílias se conscientizem de que brincar não é uma ação passiva e de menor importância. “A criança está brincando e daqui a pouco alguém interrompe para pedir a execução de outra tarefa que o adulto julga necessário naquele momento”, comenta Morais.
Uma pesquisa realizada pela Universidade de Cambridge com 1.700 crianças de 3 a sete anos mostrou que as que brincaram plenamente aos três anos apresentaram menores índices de problemas de saúde mental aos sete anos. Os resultados positivos de proteção à saúde mental também foram detectados em grupos com vulnerabilidades sociais como a pobreza ou mães que passaram por sofrimento psicológico na gravidez ou no pós parto imediato.
Pensar na garantia dos direitos da criança também passa por pensar no bem estar da família. “Para que a mãe possa se sentir menos sobrecarregada por ser a pessoa que mais cuida, precisamos de toda a cidade como rede de apoio. É preciso fortalecer a cultura de paz entre as comunidades para essa roda girar”, defende Ana Claudia.