Inspirações e experiências

Aprender

Sobre o cantar e encantar: a melodia que fica para as crianças

14 de setembro de 2016

Em 2003, Paulo Tatit, músico e produtor da Palavra Cantada, escreveu para a Folha de São Paulo sobre a importância do cantar, da melodia e do encantamento que essa combinação causa em bebês e crianças. Disponibilizamos aqui o texto porque é atual e conversa com toda a inspiração da Aliança pela Infância e seu trabalho no Brasil. Boa leitura!

Quando nos comunicamos com uma criança nosso tom de voz eleva-se, fica mais agudo, e as palavras, mais alongadas. E, quanto menor a criança, mais estendemos as vogais, tornando nossa fala mais próxima de um canto. Um canto com melodias bem soltas e livres como o canto atonal de um bebê.

Um bebê primeiramente canta, depois vai colocando palavras em sua entoação tal como se faz nas canções em parceria, quando o letrista se inspira na melodia do parceiro. É assim a construção da nossa linguagem falada: primeiro a melodia, depois as palavras e os seus sentidos. A mãe conversa o tempo todo com seu neném, mas o que fica de suas mensagens é principalmente a melodia, melodia maravilhosa emitida por um instrumento muito especial: as cordas vocais da mãe. Esse som lhe dá prazer, conforto e segurança. Toda mãe deveria cantar para o filho e preencher o seu mundo com música.

Mas nem sempre isso é possível. Numa sociedade como a nossa, em que o grau de ansiedade com o tempo mantém-se constantemente elevado, os contatos básicos e intuitivos -como o de despender meia hora para cantarolar uma melodia para um bebê- são práticas que tendem a ser alijadas do dia-a-dia. Muitas vezes, as mães nem sequer dispõem de um repertório para cantarolar. O aprendizado natural de canções que passavam de pais para filhos já foi há muito tempo interrompido. Então, cantar o quê? Como cantar? Quais melodias e quais letras?

O mercado de consumo não perde tempo e oferece suas respostas: CDs contendo músicas delicadas, muitos com sons de caixinha de música que reproduzem trechos do repertório clássico europeu, fitas de vídeo para entreter bebês “de zero a quatro anos”! Bem, eu não gostaria que minha filhinha tivesse por companhia um monitor de televisão. Um bebê precisa do toque, do olhar, do cuidado de outras pessoas!

Gosto de imaginar que o cérebro de uma criança de até dois anos ainda está em plena maturação. O processo todo só se completa na convivência com os seus semelhantes. Antes disso, o mundo do bebê é muito sonoro. Ele próprio gosta de cantar e, para acompanhar seu canto, damos a ele um chocalhinho. É curioso lembrar que o chocalho é o instrumento que todos os pajés e feiticeiros do mundo utilizam para invocar o mundo sobrenatural, o mundo espiritual, o mundo mágico.

Acho que a melhor música para um bebê é aquela emitida ao vivo por uma voz que ama o bebê. Nessa fase, não é preciso se preocupar com afinação nem com valores timbrísticos, pois tudo isso é supérfluo diante do essencial que é a nossa presença, de corpo e alma, emitindo uma melodia. Cantar e encantar são palavras com a mesma raiz e é exatamente isso que deve acontecer quando cantamos com vontade para os bebês -um verdadeiro ritual de encantamento.

 

Paulo Tatit para a Folha de São Paulo.

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