Este texto é de autoria de Letícia Zero, coordenadora executiva do movimento Aliança pela Infância, e resulta de reflexões elaboradas para o evento “Trabalho em rede pelos direitos humanos”, que integrou a programação do projeto Direitos Humanos para Todas as Pessoas, realizado de 19 a 30 de março de 2025, em diversas unidades do Sesc São Paulo
A Aliança pela Infância é um movimento comprometido com a promoção de uma infância plena, digna e cheia de encantamento. Mais do que uma organização, somos uma rede viva, dinâmica e criativa, formada por pessoas de diferentes áreas e saberes que compartilham o compromisso de valorizar e proteger a essência da infância. Chamamos isso de defender o direito da criança a ter uma infância. Uma infância plena, digna e cheia de encantamento.
No Brasil, nosso trabalho se estrutura a partir da atuação em rede, com núcleos espalhados por diversas regiões do país. Essa rede se sustenta pelo engajamento voluntário de pessoas que, movidas pela dedicação à infância, tornam-se “aliançadas”.
Acreditamos na horizontalidade das relações, no diálogo e na colaboração como caminhos para ampliar nosso impacto e sensibilizar cada vez mais pessoas, organizações e governos para a importância da infância. Para dar fôlego e apoio a esse movimento, contamos com a Associação Pró-Aliança pela Infância, que, por meio da Secretaria Executiva, promove articulações nacionais, organiza os canais de comunicação com sistematização de conhecimento, promove campanhas e plataformas para a participação de todas as pessoas e fortalece as conexões entre os núcleos, potencializando nossa atuação coletiva.
Cada núcleo e cada membro decide sua atuação com base em nossa Carta de Princípios e nos direcionamentos institucionais. Essa autonomia é essencial para refletir as múltiplas realidades do país, os diversos perfis das pessoas aliançadas, e garantir que as ações sejam pertinentes a cada território. Acreditamos que essa dinâmica de autonomia e colaboração é uma expressão viva da construção coletiva, permitindo que diferentes atores contribuam com seus conhecimentos e experiências. Além do apoio contínuo da Secretaria Executiva, realizamos reuniões periódicas para troca de experiências. No entanto, a falta de financiamento limita a realização de encontros presenciais, essenciais para o fortalecimento dessa rede.
O financiamento é um desafio para redes voltadas ao compartilhamento de experiências e conhecimento, mas que não realizam atendimento direto a um público específico. Editais e patrocínios costumam exigir um público-alvo bem delimitado,além de documentação do atendimento, o que nem sempre se aplica a uma estrutura voluntária e descentralizada. Além disso, muitos dos elos que sustentam essa rede são pessoas movidas pelo desejo de defender a infância, sem necessariamente ter um amplo currículo no tema. São indivíduos diversos, de diferentes realidades e formações, que atuam coletivamente para fazer a diferença. Acolher esse perfil amplia a potência de atuação da rede, no entanto nem sempre se encaixa nas oportunidades de financiamento.
O brincar livre e em todos os lugares
A Semana Mundial do Brincar (SMB) é um exemplo da potência dessa mobilização em rede e da construção coletiva que caracteriza nossa atuação. Todos os anos, na semana que envolve o dia 28 de maio, Dia Mundial do Brincar, mais de 500 pessoas, instituições e coletivos realizam ações para sensibilizar a sociedade sobre a importância do brincar na infância e para lembrar que o brincar é um direito, garantido por legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Marco Legal da Primeira Infância e a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.
A SMB não é apenas uma iniciativa da Aliança pela Infância. Nossa função é lançar a mobilização inicial: divulgar o tema inspirador, estruturar os canais de comunicação, sistematizar conhecimentos e produzir conteúdos que inspiram, orientam e incentivam a participação. A partir disso, cada pessoa e instituição desenvolve e coloca em prática suas próprias ações, de forma autônoma e conectada à sua realidade local. Assim, a Semana Mundial do Brincar reflete as múltiplas infâncias que existem nos diferentes territórios do Brasil, com seus diferentes contextos culturais, sociais e econômicos. Trata-se de uma mobilização coletiva, onde cada iniciativa individual ganha força ao fazer parte de um movimento maior, demonstrando, mais uma vez, a força das redes como construção coletiva na defesa do direito de brincar.
Falar sobre os direitos das crianças é essencial. A infância é transversal – crianças estão presentes em quase todos os grupos sociais! E é papel de todas as pessoas adultas garantir o seu bem-estar. Isso é reforçado pelo artigo 227 da Constituição Federal, que determina que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar os direitos de crianças e adolescentes com absoluta prioridade.
O tempo da infância é agora. São apenas 12 anos, um período breve diante da expectativa de vida de uma pessoa. Não se trata de preparar a criança para o futuro, mas de garantir as melhores condições para que a infância floresça no presente. A criança já é cidadã e merece ser protegida pelo que representa hoje.
Na Aliança pela Infância, falamos muito sobre encantamento. Acreditamos na necessidade de viver e promover esse estado de maravilhamento com o mundo, tanto para as crianças quanto para os adultos que as cercam. Como diz Mia Couto, “é preciso se encantar antes para poder encantar o mundo”. E encantamento não é supérfluo. Como bem dizia Nina Horta, “quando estivermos encantados estaremos no clima de engajamento com o mundo e seus problemas e com vitalidade bastante para renovar o planeta e amar o próximo”. Encantar o olhar dos adultos para a infância é fundamental para garantir que os direitos das crianças sejam efetivamente protegidos e valorizados.
O que queremos dizer com isso? Que, ao falar dos direitos das crianças, não basta garantir que todas tenham comida suficiente, uma vaga na escola ou uma moradia segura. É preciso que elas possam saborear uma comida que reflita seus valores culturais, que as escolas sejam acolhedoras – com boa arquitetura e educadores bem remunerados – e que as casas ofereçam segurança e aconchego para que possam sonhar. Para isso, famílias e cuidadores precisam de bons empregos e de um transporte público eficiente, por exemplo.
E aqui volto ao brincar – a linguagem da criança, que permeia todos os seus atos e direitos. Sei que, em muitas escolas, famílias questionam o tempo dedicado ao brincar, achando que a criança está “perdendo tempo”. Também conheço relatos, de duas cidades em regiões diferentes do Brasil, sobre vereadores que se mobilizaram para instituir a Semana Municipal do Brincar como política pública em suas cidades e foram ridicularizados por seus opositores, como se o ato de brincar fosse algo desnecessário diante dos problemas urbanos.
Termino com esses exemplos para lembrar que a sensibilização é um papel fundamental da Aliança e da Semana Mundial do Brincar em seu trabalho em rede. Sensibilizar para os direitos da infância e para o brincar livre é criar bases para uma sociedade que compreenda a importância desses direitos, valorize suas crianças, reconheça a necessidade de políticas públicas para a infância e esteja preparada para propor e acolher essas políticas.