Inspirações e experiências

2025

Proteger o encantamento da infância nas aprendizagens cotidianas: um olhar para a Semana do Aprender 2025  

12 de março de 2025

Por Daniela Signorini*

 

A infância é um período fundamental da vida, repleto de descobertas, curiosidades e aprendizados que moldam não apenas o presente, mas também o futuro de cada indivíduo. No entanto, em um mundo cada vez mais urbanizado e acelerado, proteger o encantamento das infâncias tornou-se um desafio urgente. A Semana do Aprender 2025, promovida pela Aliança pela Infância, convida-nos a refletir sobre como as aprendizagens cotidianas podem ser espaços de proteção, respeito e estímulo ao desenvolvimento integral das crianças.  

 

As aprendizagens cotidianas são aquelas que ocorrem no dia a dia, longe dos holofotes da educação formal. Elas se dão nas brincadeiras, nos encontros com os amigos, nas observações do mundo ao redor e nas interações com a família e a comunidade. Como destacam Brougère e Ulmann (2012), essas aprendizagens são parte de uma ordem cultural e social implícita, muitas vezes invisibilizada diante da ênfase dada às instituições formais de ensino. No entanto, é no cotidiano que as crianças constroem saberes fundamentais, apropriando-se do mundo de maneira criativa e autônoma.  

 

Henri Lefebvre (1999), em sua obra “A Revolução Urbana”, nos ajuda a compreender o cotidiano como um espaço de possibilidades. Para ele, o “habitar” – em contraste com o “habitat” – representa uma relação mais espontânea e poética com a vida, em que os seres humanos se apropriam do espaço de forma criativa e cultural. Nas cidades contemporâneas, no entanto, o cotidiano muitas vezes se apresenta de forma alienante, repetitiva e distante do encantamento que caracteriza a infância.  

 

As crianças, com seu olhar singular e imaginativo, têm muito a contribuir para a reinvenção do urbano. Como aponta Ana Fani Carlos (2020), os espaços públicos são palcos de conflitos e contradições, mas também de possibilidades de transformação. Crianças e adolescentes, com suas vivências e brincadeiras, podem ressignificar o espaço urbano, tornando-o mais lúdico, poético e humano. No entanto, a realidade das grandes cidades, como São Paulo, muitas vezes dificulta essa conexão. A rua, outrora espaço de encontro, trocas e brincadeiras, foi progressivamente tomada pelos automóveis e pela lógica do consumo e do individualismo. Como observa Oliveira (2004), a rua perdeu seu caráter de espaço público amigável, tornando-se um local de circulação rápida e intensa, pouco propício para a convivência e o brincar.  

 

Nesse contexto, os playgrounds e parques surgem como alternativas, mas nem sempre cumprem o papel de espaços seguros e estimulantes. Como alerta Jane Jacobs (2009), a segurança das crianças não está na segregação em espaços fechados, mas na vitalidade e diferentes atividades circulando pelas ruas e calçadas, onde a presença de adultos e a diversidade de usos criam um ambiente potencialmente protetor.  

 

A rua, outrora um espaço de encontros, brincadeiras e aprendizagens, tem perdido seu lugar central na vida das crianças, especialmente em grandes cidades como São Paulo. Nas últimas décadas, o crescimento acelerado da urbanização, a priorização do transporte individual e a sensação de insegurança transformaram as ruas em espaços dominados pelos automóveis, relegando as crianças a ambientes fechados e controlados, como condomínios, shoppings e playgrounds. No entanto, a rua não é apenas um local de passagem; ela é um espaço público essencial para a formação das crianças, onde se desenvolvem aprendizagens cotidianas fundamentais para seu crescimento integral.  

 

Como destacam Lévy e Lussault (2003), a rua é uma configuração complexa que combina funções de circulação e habitat social. Ela é o espaço onde as relações sociais se estabelecem, onde as crianças aprendem a negociar, a cooperar e a resolver conflitos. Oliveira (2004) reforça essa ideia ao descrever a rua como um espaço aberto e coletivo, onde ocorrem múltiplos eventos e interações. Para as crianças, a rua é o primeiro contato com o mundo além do espaço privado da casa, um lugar onde podem explorar, criar e se conectar com o ambiente ao seu redor.  

 

No entanto, a transformação das ruas em espaços prioritariamente voltados para a circulação de veículos tem impactado profundamente a infância. Como observa Oliveira (2004), a criança que caminha pela rua desenvolve seus sentidos, sua criatividade e sua sociabilidade, enquanto aquela que não tem essa oportunidade perde a noção de espaço e a identidade com seu bairro. A rua, antes um espaço de brincadeiras e descobertas, tornou-se um ambiente hostil, onde as crianças são vistas como intrusas.  

 

Essa mudança reflete uma dinâmica mais ampla da sociedade contemporânea, marcada pela “modernidade líquida” descrita por Bauman (2009). Nas cidades, os poderes globais e as identidades locais entram em conflito, gerando uma sensação de insegurança e fragmentação. As ruas, antes espaços de convivência e troca, são cada vez mais dominadas por uma lógica individualista e funcional, que exclui as crianças e outros grupos vulneráveis.  

 

Jane Jacobs (2009) nos lembra que a segurança das ruas não depende de muros ou segregação, mas da vitalidade e diversidade de usos. Uma rua movimentada, com comércio, pedestres e atividades variadas, é naturalmente mais segura e acolhedora. As crianças, ao brincar nas calçadas, são observadas e protegidas pelos adultos que circulam no local, criando um ambiente de confiança e responsabilidade compartilhada. No entanto, a substituição das ruas por playgrounds e parques fechados, muitas vezes isolados e pouco utilizados, não resolve o problema da segurança. Pelo contrário, pode criar espaços vazios e perigosos, como alerta Jacobs.  

 

A rua também é um espaço de aprendizagens informais, onde as crianças desenvolvem habilidades sociais, emocionais e cognitivas de forma espontânea. Ao brincar na rua, elas aprendem a lidar com regras, a negociar com os colegas, a resolver conflitos e a explorar o mundo ao seu redor. Essas aprendizagens, embora invisíveis aos olhos da educação formal, são fundamentais para a formação da criança enquanto sujeito social.  

 

Contudo, a realidade das grandes cidades tem limitado cada vez mais essas oportunidades. Como aponta Oliveira (2004), o crescimento urbano, a falta de transporte público adequado e o aumento do uso do automóvel têm transformado as ruas em espaços hostis para as crianças. Em muitos bairros, como a Penha e o Cangaíba, zona leste de São Paulo, as ruas que antes eram palco de brincadeiras e interações hoje são dominadas por carros e estacionamentos. Nesse contexto, as crianças em situação de vulnerabilidade social acabam encontrando um outro espaço para realizar as suas brincadeiras: o contraturno escolar.  

 

No coração de São Paulo, em um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) na região da Água Rasa, encontramos um microcosmo das aprendizagens cotidianas e da educação não-formal. Este espaço, que deveria ser um refúgio de brincadeiras, descobertas e interações, acaba refletindo as tensões entre o formal e o informal, o programado e o espontâneo, o habitat e o habitar, como proposto por Henri Lefebvre (1999). No CCA, as crianças e adolescentes encontram um ambiente que mescla práticas de educação formal (como a realização de lições de casa – reforço escolar), não-formal (oficinas e atividades dirigidas) e informal (brincadeiras livres). No entanto, o que mais chama a atenção é a forma como esses sujeitos, em sua sabedoria infantil, buscam ressignificar o cotidiano, transformando-o em algo mais lúdico e significativo.  

 

Para as crianças, a quadra e a sala de artes são espaços de liberdade, onde podem brincar, criar e se expressar. No entanto, o tempo dedicado a essas atividades é frequentemente reduzido em favor da lição de casa, uma prioridade que reflete a influência da cultura escolar no contraturno. Mesmo assim, as crianças encontram formas de resistir a essa rotina programada. Elas adiantam as tarefas, criam jogos a partir das atividades propostas, ou simplesmente ignoram as regras para ganhar mais tempo de brincadeira. Esses pequenos atos de rebeldia, como descrevem Soto e Kattan (2019), não são meras bagunças, mas sim tentativas de participar ativamente do seu próprio cotidiano. Eles revelam uma aprendizagem implícita, baseada na observação e na imitação dos colegas, que constroem juntos estratégias para subverter a ordem estabelecida. Como aponta Brougère (2012), a vida cotidiana é um repertório de práticas que se reinventa constantemente, e as crianças do CCA são mestres nessa arte.  

 

Durante as rodas de conversa realizadas no CCA, as crianças e adolescentes demonstraram um desejo claro de participar mais ativamente na elaboração das atividades e na organização dos espaços. Eles sugeriram, por exemplo, aumentar o tempo de uso da quadra, diversificar as atividades e o uso dos materiais, incluir novas propostas pensadas por eles mesmos e até mesmo construir um parque infantil. Essas ideias refletem uma vontade de habitar o espaço de forma mais autêntica e criativa, resgatando o sentido lúdico e poético do cotidiano. No entanto, como destaca Lourdes Gaitán (2015), a participação efetiva das crianças depende do poder que os adultos estão dispostos a ceder. No CCA, essa dinâmica é evidente: enquanto as crianças buscam mais autonomia, os adultos, muitas vezes, resistem por desconhecerem outras ferramentas para diversificar as formas de participação, pela própria forma ou cultura escolar ali presente, até mesmo por uma pressão das famílias, e ou por uma visão protecionista que subestima a capacidade dos pequenos.  

 

Apesar de suas limitações, aquele CCA é um exemplo de como a educação não-formal pode ser um espaço de aprendizagens significativas. Nele, as crianças aprendem a negociar, a cooperar, a conflitar e a criar suas próprias regras. Essas aprendizagens, embora muitas vezes invisíveis, são fundamentais para o desenvolvimento integral dos sujeitos. Como propõe Trilla (2008), um ambiente educativo deve ser aberto, diversificado e flexível, permitindo que cada indivíduo trace seu próprio itinerário. No CCA, isso significa valorizar o brincar, ampliar as oportunidades de participação e reconhecer as culturas infantis como parte essencial do processo educativo.  

 

O exemplo do CCA da Água Rasa ilustra a importância de proteger o encantamento das infâncias nas aprendizagens cotidianas. Para isso, é necessário resgatar o lúdico como eixo central da educação não-formal, ampliar a participação das crianças e adolescentes e reconhecer suas territorialidades como espaços de criação e transformação. Como nos lembra Lefebvre (1999), é no cotidiano que se constrói a possibilidade de uma sociedade mais justa e humana. E as crianças, com sua capacidade de reinventar o mundo, têm muito a nos ensinar sobre como habitar o espaço de forma mais poética e significativa. Cabe a nós, adultos, abrir os olhos para essas aprendizagens e criar condições para que elas floresçam em toda a sua plenitude.  

 

A Semana do Aprender 2025, com o tema “Proteger o Encantamento das Infâncias”, nos convida a repensar como as aprendizagens cotidianas podem ser espaços de liberdade, criatividade e conexão com o mundo. Proteger o encantamento da infância significa garantir que as crianças tenham o direito de brincar, explorar e aprender em ambientes seguros, acolhedores e estimulantes. Isso envolve não apenas a criação de espaços físicos adequados, mas também a valorização das interações sociais e das práticas culturais que ocorrem no cotidiano. Como destacam Brougère e Ulmann (2012), as aprendizagens cotidianas são saberes construídos na atividade dos sujeitos, em contextos diversos e sempre particulares. Reconhecer e valorizar esses saberes é essencial para que as crianças possam crescer com plenitude e dignidade.  

 

O brincar é a linguagem que a criança aprende muito cedo na infância. Por meio dele, as crianças exploram o mundo, criam vínculos e desenvolvem habilidades cognitivas, emocionais e sociais. Proteger o encantamento das infâncias é, portanto, garantir que o brincar seja um direito acessível a todas as crianças, independentemente de seu contexto social ou geográfico. Brincar em contato com a natureza, por exemplo, contrasta com a padronização dos brinquedos industrializados e oferece às crianças a oportunidade de lidar com a complexidade e a diversidade do mundo. Como aponta Brougère (2012), a vida cotidiana é um repertório de práticas que se constrói e se reconstrói constantemente, gerando novas possibilidades de aprendizado e transformação.  

 

Independentemente dessas transformações, as crianças continuam buscando formas de ocupar e ressignificar os espaços públicos. Como observado no CCA da Água Rasa, as crianças criam suas próprias territorialidades, por meio da brincadeira e da convivência. Essas práticas, muitas vezes vistas como “bagunça” ou “desvio”, são, na verdade, tentativas de participar ativamente do seu próprio cotidiano, de habitar o espaço de forma mais autêntica e criativa.  

 

Proteger o encantamento das infâncias, portanto, significa resgatar a rua como um espaço de aprendizagem e convivência. Isso envolve a criação de políticas públicas que priorizem a mobilidade ativa, a segurança viária e a valorização dos espaços públicos como locais de encontro e brincadeira. Significa também reconhecer e valorizar as culturas infantis, permitindo que as crianças participem ativamente da construção de seus territórios.  

 

A campanha deste ano nos convida a refletir sobre como podemos criar cidades mais acolhedoras e inclusivas para as crianças. Proteger o encantamento das infâncias é garantir que cada criança tenha o direito de brincar, explorar e aprender nas ruas, resgatando o sentido lúdico e poético do cotidiano. Afinal, como nos lembra Lefebvre (1999), é no cotidiano que se constrói a possibilidade de uma sociedade mais justa e humana. E as crianças, com sua capacidade de reinventar o mundo, têm muito a nos ensinar sobre como habitar o espaço de forma mais significativa e encantadora.  

 

Proteger o encantamento das infâncias é um compromisso de todas as pessoas. Envolve a criação de políticas públicas que garantam o direito ao brincar, a valorização dos espaços públicos como locais de convivência e aprendizado, e o respeito aos ritmos e interesses de cada criança. A Semana do Aprender nos lembra que, ao proteger o encantamento das infâncias, estamos construindo um presente e um futuro mais justo, empático e solidário. Como sociedade, temos a responsabilidade de garantir que cada criança possa crescer com alegria, confiança e a magia que só o período da infância pode oferecer.  

 

Que possamos, juntos, proteger o encantamento das infâncias e garantir que cada criança tenha a oportunidade de aprender, brincar e crescer com plenitude e dignidade.

*Daniela é membro da equipe executiva da Aliança pela Infância e pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Sociologia da Infância e Educação Infantil na Universidade de São Paulo. Sua Graduação é em Lazer e Turismo, Mestrado em Cultura e Doutorado em Educação, todos pela Universidade de São Paulo (USP). Ela trabalha ativamente na promoção do brincar livre, colocando em prática o que defende em suas pesquisas acadêmicas. Sua motivação para se aprofundar no assunto começou ao se incomodar quando ouvia frases como “As crianças não brincam mais”. A partir daí, dedicou-se à pesquisa do brincar como uma ação essencial, que faz parte da humanidade e pode ser compreendido como um ato de resistência das crianças em favor da espontaneidade, criatividade e curiosidade, despertando novos mundos possíveis. 

 

 

Semana do Aprender 2025 – Proteger o Encantamento das Infâncias acontece de 10 a 16 de março, e a Aliança pela Infância convida todos e todas a refletirem sobre maneiras de proporcionar às crianças um aprendizado livre e espontâneo, que respeite seus ritmos, interesses, necessidades e descobertas, por meio do brincar e da criação de ambientes seguros e acolhedores. Saiba mais aqui. 

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