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Por Letícia Zero, secretária executiva da Aliança pela Infância e integrante da cooperativa Gomo Coop
A memória gustativa é a capacidade que temos de guardar, no corpo e na mente, as experiências vividas por meio dos sabores. Não se trata apenas de lembrar o gosto de um alimento, mas de reativar tudo o que o cercava: o cheiro, a textura, o ambiente, a companhia, os sentimentos daquele momento.
É uma forma profunda de memória sensorial e afetiva, construída ao longo da vida, e que, muitas vezes, permanece viva mesmo quando outros detalhes se apagam.
Quando comemos algo que nos remete à infância, por exemplo, não sentimos apenas o gosto: somos transportados a um tempo, a uma casa, a uma mesa compartilhada. Um prato simples pode trazer de volta a presença de alguém querido, a atmosfera de uma manhã de domingo, o som da panela no fogão ou até a sensação do colo. A memória gustativa tem esse poder: é um elo entre o agora e tudo aquilo que, de alguma forma, nos nutriu.
Na infância, essa forma de memória começa a ser construída desde os primeiros contatos com os alimentos — ainda no leite materno, depois nas frutas, nos grãos, nos preparos simples feitos com afeto. É através do paladar que a criança conhece o mundo: não de forma abstrata, mas concreta, corporal, presente. Cada nova comida é um universo a ser explorado com os sentidos todos.
Mais do que registrar sabores, a criança registra experiências completas de relação, cuidado e pertencimento. Ela aprende o gosto das coisas, mas também o gosto dos lugares, das histórias contadas em volta da mesa.
É assim que o comer, na infância, se torna também território de encantamento — um modo de se maravilhar com o mundo e de criar vínculos com ele.
Por isso, é fundamental propiciar às crianças um comer rico em experiência, com alimentos próximos da natureza, ligados à cultura do lugar, preparados com tempo e partilhados com afeto.
Oferecer isso é mais do que nutrir: é permitir que a criança construa referências internas que a acompanhem por toda a vida. Referências que sustentem sua identidade, seu senso de pertencimento e sua capacidade de se relacionar com o mundo de forma sensível, curiosa e presente.
Construir uma boa memória gustativa na infância é contribuir para um existir potente, inteiro, enraizado e aberto à beleza.Porque cada refeição pode ser, ao mesmo tempo, nutrição, descoberta e lembrança futura.
E, como toda boa lembrança, ela não mora só na mente — mora no corpo inteiro.
Outro dia, pensando sobre o que é memória gustativa para a Semana do Comer da Aliança pela Infância, me dei conta de como essa palavra — “memória” — pode ser traiçoeira. A gente supõe que memória é algo que se compartilha. Mas às vezes ela vive sozinha, guardada num corpo só.
Na casa das minhas tias-avós, havia sempre um doce de banana. Se eu fecho os olhos, eu lembro de como era ele exatamente. Ele ficava num pote de vidro, em cima de uma bandeja com uma toalhinha branca, sobre uma bancada de fórmica vermelha, no canto da copa. Era um daqueles doces bem apurados, escuros, doces de verdade, feitos com tempo e panela grossa. Eu chegava, me sentava ali,e o doce já estava lá — sempre.
Anos depois, já adulta, quando desmontamos o apartamento delas, fiquei com o pote. Levei pra casa, fiz uma bananada e coloquei dentro dele. Mandei uma foto no grupo da família, achando que todos iriam sorrir e lembrar. Mas ninguém lembrava do doce. Nem do pote. Aquilo que, para mim, era quase um relicário, para os outros não tinha deixado traço.
Desde esse dia eu entendo que a memória gustativa é pessoal, corporal, silenciosa. Um afeto armazenado no paladar.
Memória gustativa é a lembrança que mora no sabor — mas que traz junto o cheiro, o gesto, o lugar, o tempo, a sensação. É quando um alimento guarda dentro dele toda uma cena, um vínculo, um pedaço da vida.
Na infância, essas memórias começam a se formar desde cedo. O leite materno. A primeira fruta. O tempero de casa. O pão da escola. Cada comida nova é uma forma da criança descobrir o mundo com os sentidos.
Mas mais do que registrar sabores, ela registra experiências. Quem estava junto. Como se sentia. O que havia em volta. Pois o comer é território de encantamento, de conhecimento do mundo e de si.
Por isso é tão importante oferecer às crianças um comer rico em experiências, cheio de alimento vivo, de envolvimento, de tempo e de afeto. Um comer que possibilite à criança descobrir quem ela é, e o que ela quer carregar consigo do mundo, a definindo como sujeito potente. É isso que vai ficando como marca no corpo. Não para que todos tenham as mesmas lembranças, mas para que cada um tenha as suas próprias lembranças.
E que essas memórias possam acompanhar a criança, como quem guarda um pote no canto da alma. Mesmo que, um dia, ninguém mais se lembre, ela vai lembrar, e vai carregar a sensibilidade da experiência e da lembrança a cada passo e ato da sua trajetória.