Inspirações e experiências

Comer

O que a introdução de alimentos para os bebês nos ensina sobre alimentação

21 de agosto de 2020

Entrevista com Fabiolla Duarte, idealizadora do Colher de Pau

Na “Semana do Comer – Alimentação que mobiliza afetos”, que aconteceu nos dias 10 a 16 de agosto, a Aliança pela Infância, núcleos, parceiros e aliançados em geral mostraram que há muito mais envolvido no ato de alimentar-se do que suprir as necessidades nutricionais, principalmente quando se trata de alimentação para a infância. Ampliam o paladar, ao saborear as comidas, e tatear novas experiências de vida, são elementos que nutrem a criança de maneira integral, para além das necessidades nutricionais. Como o tema não se esgota, mesmo com o fim da semana especial, continuamos o papo por aqui.

E quando se trata de crianças em seus primeiros meses de vida? Em seus primeiros contatos com determinadas texturas e sabores?

Fabiolla Duarte, facilitadora do Curso de Introdução de Alimentos, direcionado para cuidadores de bebês em transição alimentar, conversa com a Aliança sobre o tema: alimentação que mobiliza afetos.

 

Confira:

Como a maternidade despertou sua escuta para a introdução dos alimentos sólidos nas crianças?

A maternidade despertou em mim a atenção à introdução de alimentos porque, em minha trajetória pessoal, comer significou autoconhecimento, libertação, melhora nas minhas emoções; um caminho mesmo. Tem pessoas que vão à igreja, tem pessoas que usam substâncias, para mim a comida é esse lugar bioquímico e de ampliação ou não da minha percepção. Aí, pensei; um dia meu filho vai comer. Então, eu quero entregar a minha atenção especial para esse momento. E aí, fiz uma pesquisa extensa sobre o assunto por todas as linhas que pude acessar; desde as mais convencionais, de pediatras, até as antroposóficas, fui ler o que a filosofia falava, o que a macrobiótica falava, o que a homeopatia falava… E foi um processo porque, a cada pesquisa, eu via pontos que faziam sentido.

Em algum momento, eu olhei para o meu bebê e para mim e eu pensei que maravilha, que liberdade, como é artístico eu poder fazer uma síntese dessas partes que mais fazem sentido nisso tudo e implementar isso para as pessoas. Foi uma síntese de mãe, e eu fiz toda essa pesquisa e valorizei isso, não porque o alimento era importante para mim, era porque o leite materno, quando não fosse exclusivo mais para ele, eu pudesse entregar algo muito especial da terra, porque ter um bebê para mim era muito, muito precioso. Então eu queria caprichar muito nessa fase dele de estar mais aterrado.

Já pensou que maravilha entregar o que há de melhor em termos de literatura, de abordagem, de alimentos mesmo? Mas aí eu me deparei com meu filho, um sujeito em construção, que tinha suas próprias especificidades. A coisa foi ficando bem legal, porque precisei largar mão de uns hiper preciosismos meus e ouvir o que ele desejava, assim eu vi tudo aquilo que havia estudado acontecendo, mas de outro jeito, do jeito dele, e muitas novidades ele trouxe, coisas que eu não li em lugar nenhum. Para mim, meu filho é um lugar-termômetro. Sabe quando as videntes tiram as cartas para ver o presente, o passado e o futuro? Para mim, as cartas são a comida. Aqui em casa, como mãe, e eu amo aprofundar essa leitura quando eu observo meu bebê se alimentar.

De que forma o aleitamento pode ser combinado com essa nova dieta?

Muitas vezes a amamentação é vista como a vilã que não deixa o bebê gostar da comida. Afinal, como competir com aquele líquido tão bom, com aquela sensação intrauterina. Mas considero essa visão muito equivocada, pois está alinhada com uma maneira de alimentar a criança de forma muito pasteurizada – a mãe dá o alimento tal no dia tal, e a meta é que o bebê coma. É muito difícil um bebê gostar desse tipo de tratamento, nem um adulto, idoso, planta gostaria dessa imposição sem consulta. Se formos por esse caminho, dificilmente vamos ganhar da amamentação. Até entendo quando a amamentação é evitada para fazer o outro modelo vingar. Agora, quando a introdução de alimentos é uma vivência multidisciplinar que tem a ver com o campo cognitivo, com o campo sensorial, com esse lugar incrível de muitas sinapses cerebrais, ele é em si um universo de registros, sensações de paisagens internas e hiper prazeres de um novo mundo que se abre. De um mundo onde a experiência agora é tridimensional, algo que não se vive quando está apenas sendo amamentado. A amamentação não compete com isso e isso não compete com a amamentação, são duas experiências selvagens, arquetípicas que andam em retas paralelas, então, as mães que dão para os seus bebês mamadeiras ou peito na amamentação podem seguir o tempo que for para viver isso, são movimentos que não se competem. Por exemplo, começar a andar e desfraldar, são momentos muito importantes na vida de uma criança, mas não tem nada a ver uma com a outra. É o mesmo com a amamentação e a alimentação com outros tipos de alimentos, isso quando são conduzidas em paralelo e com respeito. Aliás, eu mesma dava peito para o meu filho enquanto ele se alimentava e ele comia muita comida, algo que eu não supervalorizo e acho que devemos ter como meta, mas eu pontuo só para dizer que além dele comer o dia inteiro, ele ainda era capaz de mamar para caramba. Levei a questão ao pediatra, preocupada, e ele me disse: “deixa ele comer, senão ele não vai aprender sobre fome e saciedade”.

Como você entende a relação entre mãe e filhote a partir do alimento? 

A relação da mãe com o bebê tendo a comida como meio de campo é um lugar de intimidade muito grande, a mãe e o bebê trocam muitos fluidos, tem uma coisa muito íntima da pele, eles suam juntos, o cheiro dela, o coração dela, esse cheiro e esse som são muito íntimos. É a mãe que está, na maioria das vezes, nesse lugar de fazer massagem, de cuidar, de limpar, do cheiro, do calor, parece até que o amor é algo que se dá no encontro das peles. Mas existe um campo muito do primitivo. Porque os filhotes de mamíferos se alimentam a aprendem sobre o mundo através dos seus cuidadores mais íntimos. Se o bebê vê o adulto colocando algo na boca, e o adulto está sempre fazendo isso e sentindo algo a partir daquele ato, ele quer sentir aquilo também. Comer junto é um ritual muito antigo, os cientistas dizem que o humano começou a se distanciar dos animais quando começou a compartilhar o alimento. O que é a comida entre o cuidador mais íntimo e o bebê? É como se entre eles houvesse uma fogueira.

Por que, na sua opinião, vamos nos apartando dos valores simbólicos e sensoriais do alimento? 

Acho que esse distanciamento acontece faz pouco tempo, e eu acho que isso tem a ver com a massiva e abusiva campanha da indústria de alimentos ultraprocessados. Ela convenceu as gerações anteriores, a geração de nossos pais, que não precisamos viver os processos, os processos são feitos por eles, a indústria, você só precisa abrir a embalagem. E a embalagem tem todo um jogo de sedução com as mensagens, com as cores. Se a indústria me propõe cápsulas de solução para as necessidades do meu bebê, então, pronto, tenho tempo para ser feliz e descansar. É uma lavagem cerebral que vence a gente pelo cansaço visual. E nós, adultos de hoje, crescemos abrindo latas. Comer alimentos ultraprocessados é comer de olhos vendados e isso é político. Se sigo de olhos vendados é uma atitude política, se sigo de olhos abertos é uma outra atitude política. E aí, comer de olhos abertos já entra na canaleta da interação, do protagonismo, do simples, do mais barato. Nada mais barato do que ir a uma feira do lado da sua casa e fazer sua compra, muito mais barato que ir no supermercado e comprar um monte de embalagens. Colocar-se politicamente contra a sistematização da comida por ultraprocessados é importante. Não digo apenas sobre saúde física, eu falo também sobre saúde mental e política. Falo da gente atualizar o software da humanidade que há em nós.

Comente sobre o sobre seu curso: “Colher de Pau 1”. O que ele aborda para além dos alimentos e quais são as aflições mais recorrentes dos cuidadores?

O Colher de pau 1 – “Curso de Introdução de Alimentos para Bebês” na verdade deveria se chamar “Sobre o Começo da Vida”. Dou esse curso há nove anos e tenho feedbacks muito importantes ao longo do tempo e ele é sempre muito parecido, as pessoas me dizem quem é um curso que vai muito além da introdução de alimentos; e isso me traz muita alegria. O curso é sobre isso, mas não só. Falamos sobre alimentos, mas também sobre os mitos, volta ao trabalho, amamentação, sobre a relação da família com a comida, sobre como comemos… enfim. A gente esgota todos os assuntos. Mas é que cada vez que a gente passa por um deles, a gente faz um mergulho e o espectro aumenta, porque estamos falando sobretudo de desenvolvimento infantil. E digo mais, acredito que todos os cursos sobre introdução de alimentos deveria ser muito mais que ensinar a dar comidinha para o bebê, porque quem está falando só sobre esse aspecto está ensinando como “adestrar” uma criança, como ela reage à comida e ponto final. Instrução de alimentos é como um salto de desenvolvimento e portanto é multidisciplinar.

Agora estamos em versão online desde o começo da pandemia, e fiquei surpresa que deu certo, com os recursos que eu tinha, eu fiz o que pude e caprichei muito no conteúdo. São muitas aulas, muitos vídeos, muitos textos, é um building up, um crescente de consciência, e eu vou facilitando, trazendo soluções, todos são muito protagonistas, eu apenas conduzido esse processo. Sinto muita felicidade e orgulho desse trabalho. É muito político, sem ser partidário, obviamente. É como um rito de passagem sobre o olhar para a parentalidade.

Fabiolla Duarte é criadora do Colher de Pau, mãe e educadora, dá cursos há quase 10 anos, sobre introdução de alimentos dos bebês e comportamento alimentar infantil e adulto como campo amplo da experiência humana. 

Site: https://fabiolladuarte.com/
IG: colherdepau_fabiolladuarte
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Imagem: acervo Fabiolla Duarte 

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