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Núcleo da Aliança pela Infância atua em vivências sobre Pedagogia da Emergência em Roraima

25 de março de 2019

Pacaraima, município localizado a 200 km de Boa Vista, capital do estado de Roraima, é um nome que tem figurado em notícias diariamente. Isso porque o local, que contava com pouco mais de 12 mil habitantes, recebe diariamente venezuelanos que decidiram sair de seu país.

Boa parte das pessoas que vem procurar refúgio no Brasil é instruída e seguia carreiras diversas na Venezuela. Segundo uma pesquisa realizada pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), 78% da população não indígena que atravessa a fronteira possui nível médio completo e 32% têm superior completo ou pós-graduação. Ainda, mais de 50% dessa população estava empregada em atividades remuneradas em 2017.

Mas qual é a realidade de alguém que deixa tudo para trás em busca de uma vida diferente? O que os venezuelanos encontram ao chegar ao Brasil? Para onde vão? Onde buscam abrigo? Essas são só algumas das inúmeras perguntas iniciais. Em segundo plano, mas não menos importante, existem questionamentos sobre o estado emocional e mental dessas pessoas, o relacionamento familiar, o emprego, a escola, o bem-estar das crianças e a lista não acaba.

Diante do grande fluxo de pessoas venezuelanas para o Brasil e da crise humanitária instalada, o governo brasileiro, via Casa Civil, coordena a Operação Acolhida, em parceria com o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), e com apoio da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

Além das agências do Sistema ONU, organizações da sociedade civil também se mobilizaram para ajudar o enorme contingente de pessoas que agora residem em municípios de Roraima. É o caso da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI), entidade criada para disseminar valores fraternais.

Anália Calmon, membro do Núcleo da Aliança pela Infância de Carmo da Cachoeira (MG) e professora Waldorf, está envolvida com um grupo de trabalho de apoio a pessoas em situação de refúgio em Roraima e conversou com a Aliança pela Infância para relatar sua experiência pessoal nessa iniciativa.

Aliança pela Infância: Como começou sua relação com a crise humanitária da Venezuela e a situação em Roraima?

Anália: Em outubro do ano passado, fui convidada a participar do foco de educação do trabalho realizado em abrigos para venezuelanos em Roraima, porque sou responsável por escolas tocadas por voluntários em Carmo da Cachoeira. Neste momento, liguei para minha companheira de trabalho na Aliança pela Infância, Giovana Barbosa, conversamos um pouco sobre as possibilidades e pensamos sobre o que seria possível fazer. Nesse período, li um livro sobre destroços e traumas e comecei a rastrear quem faria um trabalho assim no Brasil. Foi aí que descobri o Reinaldo Nascimento, que trabalha com Pedagogia da Emergência, que trata e trabalha os traumas, sejam imediatos ou de mais longa duração. A Giovana que já o conhecia, pois trabalharam juntos na Associação Comunitária Monte Azul. Ligou para ele e fez o convite, ele aceitou realizar o trabalho voluntário e disse que também levaria a esposa, que é médica. As nossas passagens foram custeadas por um fundo de viagens da Fundação Mahle.

A.I: Em qual parte de Roraima o trabalho foi desenvolvido?

A:  Entre 7 e 10 de março, fizemos uma vivência em Pedagogia da Emergência em abrigos de Pacaraima e Boa Vista [capital de Roraima] para professores e monitores venezuelanos, que, em sua maioria, são refugiados. Em cada abrigo há um espaço para as crianças não ficarem fora da escola.

A.I: Quais foram suas primeiras impressões ao chegar nos abrigos?

A: É uma situação de muita vulnerabilidade, principalmente dos indígenas. Mas o trabalho da Fraternidade está tendo boas respostas. Existe uma corrente de confiabilidade muito linda nos abrigos. Quando a gente chegava, as pessoas vinham correndo nos abraçar. Já tem uma urdidura que foi tecida na base da confiança e amor. Os abrigos são muito humanizados, eu não imaginava que fosse assim. Outra percepção foi do bom trabalho do Exército brasileiro realiza. Mesmo assim, há visivelmente uma parcela muito vulnerável que são as crianças de 0 a 6 anos.

A.I: Como foi o seu trabalho nos abrigos?

A:  Sou professora Waldorf e minha área de trabalho é com crianças. Então combinamos que o Reinaldo apresentaria a Pedagogia da Emergência e eu e a Giovana ficaríamos responsáveis pela parte artística e poética. Mas, para atender essas crianças, é preciso primeiro trabalhar com os monitores e professores. Então foi muito interessante de ver a forma com que eles bebiam o conhecimento, era um silêncio absoluto nas aulas. Eu levei uma atividade de aquarela e os indígenas, por exemplo, mostraram uma profunda intimidade com as cores. Na proposta, usei o símbolo do sol, que é também o símbolo da Aliança pela Infância. Expliquei que esse astro brilha para todos e não faz diferença entre as pessoas, que estava aqui muito antes de chegarmos e continuará muito depois de partirmos. Foi lindo porque nessa hora eles colocaram a mão no coração e ficaram quietinhos. Também falamos sobre esse túnel escuro que as crianças estão atravessando e o quanto é importante se aliançar nesse momento. Todos esses princípios da Aliança pela Infância que para mim são fundamentais. Também falamos da Aliança pela Infância em nossa formação e lemos a carta de princípios, como forma de deixar uma ideia de infância mais humana. Tudo isso, atingiu o objetivo muito mais do que eu esperava. Inclusive a Unicef – para aprofundar e dar continuidade ao trabalho – já nos convidou para voltar no mês que vem. Hoje, para falar com educadores, se ficarmos somente na teoria não conseguimos atingi-los. Com as atividades de movimento foi ótimo. A criança interior está presente nas pessoas, basta dar oportunidade para elas se manifestarem.

A.I: Por que foi importante proporcionar essa vivência aos educadores e monitores?  

A: Eu achei fundamental a vivência porque os refugiados estão em trauma. Há uma tristeza em cada um. Um dos indígenas teve uma fala muito bonita quando pintou o sol. Ele disse que a situação o lembrou da aldeia dele que quando o sol nascia, esparramava os raios pelo rio e ficava parecendo um espelho. No nascer do sol, eles se reuniam de costas para ele para que aquecesse as costas e desse coragem para enfrentar o dia. E no pôr do sol se reuniam para falar como foi.

A.I: Como a barreira do idioma é vencida?

A: Não teve barreira, na verdade. Pelo fato de muitos [refugiados] serem professores, eles também precisam entender e aprender o idioma. Mas como a missão está sendo realizada desde 2016, eles já sabem muito português. Eu percebi pelos olhos deles brilhando que estavam entendendo. Ficamos tão unidos a partir disso que nos entendemos. Foi a experiência mais rica de educação que eu já tive, e olha que estou na estrada há bastante tempo!

A.I: Como o brincar integra e acolhe? 

A: No abrigo indígena, o brincar faz parte do dia a dia deles. Vimos crianças bem pequenas com pedacinhos de pau e garrafa pet que logo viram carrinhos e canoas. Também percebemos que as crianças ajudam muito os pais, principalmente as indígenas. Você vê a criança na cintura da irmã, ou seja, também estão assumindo a vida familiar. A Clara, uma das missionárias, falava ‘Nós queremos ajudar, aprender e saber o que vocês precisam para que a gente não interfira’.

A.I: Teve alguma família ou caso que te marcou?

A: Sim. Tem uma família que chegou recentemente em Pintolândia [o abrigo para indígenas em Roraima]. Havia uma menina com baixíssimo peso. Ela estava tão carente de amor que quando eu cheguei ela veio escalando a minha perna como se eu fosse uma árvore. Quando eu a abracei, os olhos dela brilhavam. Essa criança me marcou muito. Também fiquei muito impressionada quando estava em Pacaraima e como a fronteira está fechada, muitas famílias tentam caminhos alternativos para entrar no Brasil. Nessa ocasião, vi um senhor com uma família de cinco filhos. As crianças estavam com os braços todos arranhados porque passaram por espinheiros. É um sofrimento muito grande.

A.I: Então essa foi a primeira vez que trabalhou com Pedagogia da Emergência, certo?

A: Foi a primeira vez, mas muito me surpreendeu porque eu sou pedagoga Waldorf a vida inteira e fiz 11 anos de especialização. Tudo o que usamos nas vivências eu usava em sala de aula. O fato de tudo ser muito familiar me deu uma alegria enorme.

A.I: O que você leva dessa experiência para o núcleo de Carmo da Cachoeira?

A: Acredito que levo o lema da Fraternidade mesmo: só o amor cura a dor. Porque realmente, o amor é uma força tão grande que, quando consegue tocar o outro, ele vem somar com essa corrente. Nessa hora não tem cansaço, calor e nada que esteja te furtando da experiência. É tão rica a abertura das pessoas. Elas estão tão necessitadas de ajuda que a gente esquece as dificuldades, cedemos tudo para poder estar ali.

Saiba mais

Mais notícias sobre a crise humanitária na Venezuela e a Operação Acolhida estão disponíveis no site da ACNUR.

 

*Foto: ACNUR/Luiz Fernando Godinho. 

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