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Materiais naturais e não estruturados e pouca intervenção externa: conheça o brincar heurístico

25 de novembro de 2019

Basta observar uma criança brincando para entendermos que a variação do brincar é praticamente infinita. São muitas as possibilidades desses momentos acontecerem no espaço: variam de tempo, de objetos, de forma de se relacionar com outros, de proposta e por aí vai. O chamado brincar heurístico é uma entre essas muitas opções. 

A abordagem foi desenvolvida pela educadora britânica Elinor Goldschmied. A partir de observações do comportamento de crianças de até dois anos, ela criou a proposta que combina a curiosidade característica dessa faixa etária com a exploração de objetos previamente pensados para serem fornecidos às crianças. 

A Aliança pela Infância conversou com Paulo Fochi, coordenador do Observatório da Cultura Infantil, doutor em educação e assessor do Ateliê Carambola para compreender do que se trata o conceito. 

Livre exploração: o que é o brincar heurístico 

Derivado da palavra grega eureca, que significa descoberta, o brincar heurístico pode ser definido como ‘uma brincadeira de descobrir e explorar’. No brincar heurístico o adulto observa as maneiras utilizadas pelas crianças para explorar, interagir, escolher e tomar posse de objetos e suas propriedades e possibilidades. 

A livre exploração permite o desenvolvimento e expressão da criatividade e curiosidade inata à faixa etária. É o interesse pela forma com que os objetos por ela manipulados se comportam no espaço e suas descobertas consequentes, que incentivam as crianças a continuar explorando. 

O que não é brincar heurístico 

Por ainda não ser um conceito muito difundido e estudado no Brasil, interpretações incorretas são comuns quando se trata de brincar heurístico. Paulo argumenta que a prática não deve ser compreendida como simplesmente fornecer materiais não estruturados ou sucatas às crianças, uma vez que o brincar heurístico demanda uma organização que pode acontecer em três modalidades: o Cesto de Tesouros, o Jogo Heurístico e a Bandeja de Experimentações. 

Em comum, as três têm o objetivo de que a criança tome posse, explore o material e possa se concentrar e sentir prazer com sua própria brincadeira. 

Organização da proposta: as atribuições dos adultos 

Para que o brincar heurístico aconteça da forma correta, as três modalidades requerem intervenções pontuais dos adultos. Muitos autores concordam ao afirmar que as crianças devem aprender a sentir prazer em suas próprias atividades, sem depender de um gesto ou estímulo externo para isso. 

Segundo Paulo, entre as atribuições dos responsáveis está fazer uma seleção e manutenção de materiais, saber preparar um espaço com os materiais, fazer a iniciação e o encerramento da proposta, saber observar e documentar, interpretar e compreender o modo com que as crianças estão explorando e entender em que medida sua intervenção é necessária, além de, ao final da atividade, entender como é possível dar continuidade às investigações iniciadas pelas crianças. 

“O trabalho do adulto no brincar heurístico não se reduz a escolha dos materiais. É uma atividade muito sofisticada, sendo um grande equívoco as pessoas acreditarem que selecionar um conjunto de materiais e oferecer para as crianças se trata de brincar heurístico. Envolve um adulto muito disponível para aprender e estar com as crianças.”

Mais natureza e menos plástico 

Para que o brincar heurístico aconteça, é necessário um espaço tranquilo e uma seleção de objetos para que as crianças possam explorar. A ideia é que os materiais não sejam estruturados, uma vez que objetos estruturados e com uma proposta pronta podem limitar as possibilidades que oferecem às crianças. Além disso, é necessário que sejam o  mais próximos do natural, indo em direção contrária à artificialidade e uso do plástico. 

A modalidade Cesto de Tesouros é destinada a bebês que já ficam sentados mas que não fazem grandes deslocamentos. Cada cesto deve servir de três a quatro bebês, ter cerca de 60 objetos, todos naturais, evitando ao máximo o uso do plástico. O Jogo Heurístico, por sua vez, é para crianças que já engatinham e caminham. Paulo explica que é possível o uso de tapetes que circunscrevem a área de investigação de cada criança, devido à importância de cada uma se concentrar em suas próprias investigações, sem grandes interferências externas. 

Os materiais não estruturados e a polimaterialidade que aparecem no Jogo Heurístico também marcam presença na última modalidade, a Bandeja de Experimentações, destinada a crianças maiores, que já começam a se movimentar, ficar em pé e a verbalizar. 

“Nós costumamos dizer que, no Cesto, a pergunta que as crianças fazem é ‘O que é isso?’. No Jogo, elas começam a não só explorar o objeto em si, mas a fazer coisas com esse objeto, colocando a pergunta ‘O que eu faço com isso?’. E na Bandeja há uma situação que se alarga mais, quando as crianças começam a querer imaginar um futuro e uma hipótese para as coisas. Então uma possibilidade de pergunta que se fazem é ‘Como eu verbalizo isso?’. Essas perguntas são o nosso modo adulto de olhar para a experiência das crianças e imaginar perguntas macro que estão ali postas na vivência com o material não estruturado”, explica Paulo. 

Os benefícios do brincar heurístico 

Estudioso da prática, Paulo destaca alguns pontos positivos da metodologia. Em primeiro, o especialista reforça que ainda sabe-se pouco sobre como deve ser um professor de crianças pequenas e bebês, reforçando a necessidade de usar estratégias para qualificar esse tempo e interação. 

Em seguida, a realidade brasileira é um ponto a favor do brincar heurístico, uma vez que ele não demanda grandes investimentos em termos de espaço, materiais e estrutura. Uma terceira possibilidade da prática é alterar a lógica atual das interações infantis. Segundo Paulo, é possível vivenciar situações silenciosas com envolvimento da criança. 

“As pessoas sempre têm a mesma reação de choque ao assistir um vídeo do Cesto, Jogo ou Bandeja, que é a percepção do silêncio. É um silêncio de estado de interesse das crianças na sua investigação, num ambiente muito bem pensado e com um adulto que entende seu papel na relação. Além disso, a questão do tempo também é importante. Uma sessão de brincar heurístico pode durar 35 minutos ou uma hora, e as pessoas falam ‘uma criança de dois anos envolvida numa situação por uma hora?’. Isso é um contradiscurso a toda uma ideia de que criança pequena tem baixa concentração. Nós tratamos concentração como se fosse uma coisa dada, e não como uma questão construída pelas próprias oportunidades que oferecemos.”

Saiba mais 

Doutor em educação e professor universitário, Paulo criou o grupo Observatório da Cultura Infantil (OBECI) em 2013, que congrega seis escolas do Rio Grande do Sul: três da rede pública, duas da rede privada e uma de associação de pais. 

Desde então, o grupo tem se reunido para pensar o trabalho pedagógico na escola a partir de reflexões sobre o compromisso da transformação do cotidiano pedagógico. “Quando passamos a estudar essas questões em 2013, começamos a nos dar conta de que um dos grandes pontos que nos afetava e que deveríamos olhar com mais calma era o papel do adulto no sentido de como é um professor de bebês e crianças pequenas e como esse adulto pode se posicionar em uma relação educativa.”

Como já contava com um trabalho pessoal de pesquisa sobre o brincar heurístico, Paulo propõe ao grupo usar o tema como pretexto para estudar a relação adulto e criança. Ao final de três anos de estudos, os profissionais decidiram contribuir com a produção sobre brincar heurístico em Língua Portuguesa – ainda muito escassa – e publicar o livro O Brincar Heurístico na Creche – Percursos Pedagógicos no Observatório da Cultura Infantil OBECI, com a trajetória  e aprendizados do grupo. 

 

*Imagem: divulgação Ateliê Carambola. 

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