Inspirações e experiências

2021

Infâncias vulneráveis: como promover a cultura de paz quando a paz não é uma urgência?

13 de outubro de 2021

cultura de paz - sao bernardo

O Projeto Meninos e Meninas de Rua, de São Bernardo do Campo (SP), atende cerca de 300 famílias em situação de rua ou de vulnerabilidade social

 

Tatiana Ribeiro | Aliança pela Infância

Há muitas formas de quebrar o ciclo de violência, desigualdade e degradação ambiental no qual estamos vivendo. Uma delas é garantir que crianças cresçam com valores e atitudes a favor de todas as formas de vida.

Romper com a indiferença é um bom passo para começar essa transformação. “Para mim, a violência existe em alguns eventos muito simples que a gente já esqueceu. Aqui em São Paulo, por exemplo, a gente tem dois rios que cortam a cidade, o Tietê e o Pinheiros, e que estão imundos. Quantas crianças nasceram achando que os rios são assim?”, comenta Reinaldo Nascimento, terapeuta social, educador físico e difusor da Pedagogia de Emergência no Brasil.

Nascido na comunidade Monte Azul, em São Paulo, Reinaldo passou por missões voluntárias no Iraque, Líbano e Filipinas para levar a Pedagogia de Emergência, um conjunto de práticas que fortalece a resiliência de crianças e jovens que passaram por eventos traumáticos como violência física e emocional, catástrofes naturais ou que estão em vulnerabilidade social. 

A metodologia trabalha os diferentes tipos de traumas, suas características e fases, além de aplicar atividades práticas para evitar sequelas. Rodas de ritmo, desenho, aquarela, atividades de expressão corporal, teatro e muita brincadeira criam uma rotina para restaurar o senso de proteção, a segurança e a autoestima das vítimas. São formas criativas de expressão, já que nem sempre a fala é possível.

Baseada nos conceitos da antroposofia, a prática defende que o brincar é uma forma de conectar corpo e alma, e construir um lugar seguro para que as dores e feridas da alma se dissolvam. Reinaldo explica, ainda, que é muito comum que crianças que passaram por traumas relacionados à violência sintam dificuldade em dormir, pesadelos e tremores, o que exige não somente acolhimento, mas também o resgate de rotinas próprias da infância. “Quando a criança sai de casa e vê um corpo estendido no chão, vê conflitos, gritos e brigas… isso tira seu equilíbrio e segurança. Então é importante retomar os rituais, para que ela possa entender o que vai acontecer a cada momento e assim ir restaurando sua segurança”, comenta.

Reinaldo Nascimento é difusor da Pedagogia de Emergência; a imagem é em trabalho realizado no Nepal, em 2015

A escola na cultura da não violência

E como professores e cuidadores podem falar de não violência com crianças que estão cotidianamente tendo seus direitos violados? A partir da Pedagogia de Emergência, Reinaldo aponta alguns caminhos. “Trabalhar só o pensar machuca. É preciso que as  atividades tenham sentido, que quando a criança está ali, que seja a melhor hora dela. Já está difícil em casa, não podemos dificultar”.

Uma sugestão do terapeuta para dar pequenos passos e cultivar um ambiente de paz é criar rituais. “O professor pode começar se perguntando, como esse espaço pode oferecer segurança? Como disponho as cadeiras? Como pode ser um espaço que promova uma experiência de beleza, que também é a linguagem do cuidado?”

Reinaldo contextualiza, ainda, que a violência afeta a desconexão consigo mesmo, com nossos ciclos e com os outros. “Talvez eu não consiga mudar a escola inteira, mas posso começar da minha sala, escrevendo uma mensagem bonita no quadro, levar um vaso, pensar na beleza, no espaço físico. Receber, olhar no olho, perguntar como está”.

Entre as oportunidades de aprendizagem, antes do conteúdo, é possível oferecer, ainda, um verso, uma música ou um trabalho em ritmo de poema, com o bater dos pés, palmas, para acordar o corpo. Em seguida, pode-se começar uma roda de conversa. Ninguém precisa ser obrigado a falar, apenas quem se sentir à vontade. “Se a criança estiver se retraumatizando, dá uma pausa, agradece a fala e segue adiante.”

Refúgio seguro para crescer

Promover uma cultura de paz baseada nos valores da cooperação, diversidade e  cidadania ativa faz parte do cotidiano do Projeto Meninos e Meninas de Rua há quase 40 anos. Criado em São Bernardo do Campo, em 1983, a história do PMMR está intimamente ligada ao sopro de esperança, liberdade e regeneração do movimento de redemocratização do país. No ano 2000, a instituição foi reconhecida pela UNESCO como uma das experiências mais exitosas do país no atendimento à população em situação de rua.

Hoje o projeto atende cerca de 300 famílias em situação de rua ou de vulnerabilidade social realizando oficinas de percussão, cidadania, cursinho pré-enem e vestibular, futebol e capoeira, e também como centro de referência para acolhida, escuta e encaminhamento à rede de proteção, produção cultural e de movimentos sociais. “Começamos a ver que esse menino que está em situação de rua não é da rua, ele tem uma comunidade. Então começamos a ir para as comunidades para preparar o retorno dele. Temos que fazer alguma coisa no bairro para atrair ele”, comenta Neia Marianno, coordenadora do projeto.

Através do vínculo com as comunidades, os educadores do PMMR observam de perto a forma como as crianças brincam e a partir daí criar estratégias pedagógicas. “Teve uma ocasião que chamou muita atenção que a grande maioria das brincadeiras das crianças era de violência, como polícia e ladrão, com armas. Já as brincadeiras tradicionais eles não conheciam, por conta do contexto todo, por conta de um direito que é negado”.

A beleza é uma linguagem do cuidado

Quando você vive num contexto de violência, seja doméstica ou no entorno, o acesso ao lúdico fica em último plano. Mas o direito ao brincar também é necessário para que, a partir dele, seja possível debater outros direitos. “O acesso à moradia e à educação, saneamento básico, segurança, entre outros, toda essa desigualdade social deixa uma lacuna muito grande. Mas como eu vou exigir que a criança veja beleza e humanidade se ela vive em um ambiente hostil, onde nem seu direito a ter esgoto é garantido? Tudo está ligado”, comenta Neia.

Neste contexto, ela também acredita ser fundamental a união entre família, escola, sociedade e poder público, para a criação de uma cultura de paz. “Aqui em São Bernardo, por exemplo, algumas casas desbarrancam quando há fortes chuvas e ainda há pessoas que dizem que as famílias foram morar lá nestes locais perigosos porque escolha própria, enquanto vemos no centro da cidade vários prédios abandonados que poderiam ser moradia popular.”

Inspirado pela Pedagogia de Emergência, um outro exemplo dado por Reinaldo  é a compreensão das escolas como ambientes acolhedores que vão além das quatro paredes da sala de aula. “A escola pode ser um espaço para brincar aos finais de semana, ser esse lugar de prazer, de encantamento. Nela podemos também criar momentos de conversa, não no formato tradicional de reunião, mas com um café, um lanche, e favorecer que os pais ouçam coisas boas sobre seus filhos, mostrar as coisas positivas que os filhos estão fazendo e, assim, plantar sementinhas de coisas boas. E, aos poucos, junto com isso ir mencionando a necessidade de sono, do cuidado, sobre os problemas de bater e estimular a violência, entre outros exemplos”, finaliza.

Acompanhe nas redes
-Aliança pela Infância - 55 11 3578-5001 - alianca@aliancapelainfancia.org.br