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Ensino domiciliar divide opiniões de especialistas e educadores

3 de outubro de 2018

É cada vez mais comum encontrar entre famílias norte-americanas e europeias crianças e adolescentes que estudam em casa, educadas por professores particulares ou até mesmo pelos seus pais. A prática do ensino domiciliar, ou homeschooling, divide opiniões entre educadores e cuidadores e ganhou visibilidade ao virar pauta recentemente no Supremo Tribunal Federal (STF).

No dia 12 de setembro, dez ministros da corte decidiram que, com a Constituição Federal vigente, os pais e cuidadores não têm o direito de tirar seus filhos da escola para ensiná-los em casa. Na ocasião, somente o relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso, votou a favor da autorização da prática, contanto que requisitos mínimos sejam observados como por exemplo a notificação às Secretarias Municipais de Educação, para que haja um registro de crianças que estudam em casa. Segundo ele, a Constituição não proíbe a metodologia, e ressaltou que os pais teriam o direito de escolher a melhor forma de educar os filhos.

Dos dez ministros que participaram, sete argumentaram que a prática é uma possibilidade, mas que antes é preciso elaborar e aprovar uma lei que permita a avaliação do aprendizado e da socialização de pessoas que estudam em casa. Dois ministros votaram a favor da proibição total do ensino exclusivamente domiciliar, defendendo que o mesmo pode ser complementar, mas não deve substituir o ensino escolar.

Se no STF não há consenso, no cotidiano das famílias brasileiras, tampouco, o assunto está esgotado. Bruna Lima, revisora e tradutora, mãe de uma criança de sete anos, dá o tom. Ela diz que conhece o conceito, já pesquisou a respeito mas ainda não tem uma opinião consolidada. “Não estou acompanhando o debate no STF, soube pela imprensa que a proposta foi rejeitada, mas confesso que já considerei educar minha filha em casa.”

Apesar da ideia ter passado pela cabeça, desistiu. “Me preocupa o fato das crianças não terem o devido acompanhamento de profissionais especializados e a questão da perda de convivência [com outras crianças, educadores e outros profissionais do ambiente escolar]. Por outro lado, acho que se houver um programa de orientação pode ser algo benéfico às crianças, para que se desenvolvam em seu próprio ritmo”, conta.

O tema também divide opiniões mesmo entre especialistas. Entre os argumentos a favor do ensino domiciliar, lideram os posicionamentos que defendem o direito dos adultos de não optar pela educação escolar; a crença de que seres humanos são individuais e, portanto, têm necessidades diferentes; e a possibilidade de interação em espaços alternativos à escola, como parques; entre outros.

Atualmente, a Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned) calcula que existem cerca de sessenta processos sobre o tema em tramitação nos tribunais brasileiros. A instituição, fundada em 2010, promove a defesa do direito da família à educação domiciliar.

A organização define o conceito como uma modalidade de educação, na qual os principais direcionadores e responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem são os pais do aluno, o que proporciona maior amadurecimento, produz adultos seguros e com uma autoestima sólida – além de estimular o desenvolvimento da disciplina de estudo e estratégias de aprendizado.

Do outro lado, lideram os argumentos de que a garantia de educação básica obrigatória é dever compartilhado da sociedade, família e Estado; acesso a diferentes conteúdos oferecidos por diversos pontos de vista; valorização da escola como esfera mais ampla de sociabilidade; criação de pessoas incapazes de compartilhar problemas e desafios da sociedade se educadas em casa; risco de negligência do direito à educação garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre outros.

Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, defende a escola como lugar que possibilita a aprendizagem e desenvolvimento humano a partir do contato com o outro. “O acesso à educação na escola é importante do ponto de vista pedagógico para a formação do ser humano de forma integral, porque é na relação dialógica com a sociedade – e a escola é uma das instituições sociais – que aprendemos.”

Para endossar seus argumentos, cita também o artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que versa “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.”

Sobre o argumento de que outros modelos de aprendizagem podem fazer mais sentido aos alunos, Andressa defende que uma meta a ser alcançada é uma escola pública que converse com cada estudante. “Queremos que os professores sejam bem formados para que possam dialogar com a realidade e a individualidade de cada aluno e adaptar a educação dentro de sala de aula e da escola para a realidade daquela turma. Eu conheço várias escolas públicas que fazem isso: pensam na individualidade e também no coletivo, o que por exemplo uma educação domiciliar carece de referências, até porque a criança vai ficar mais isolada dentro da casa dela.”

A coordenadora ressalta que o grupo não é contra o aprendizado da criança em outros espaços, como em casa com pais e responsáveis e em outros lugares. Mas vai contra a educação sendo exclusivamente em casa. “A educação passa por processos de sociabilidade, de relação, de um trabalho que é de diversas culturas. Então quando a criança está só dentro do espaço familiar, ela não tem acesso a toda essa gama de diversidade e de convívio social com o diferente, que é o processo de estar dentro da escola.”

Segundo ela, pais e responsáveis podem exercer sua liberdade sobre a educação dos filhos ao escolher qual escola melhor se encaixa às suas crenças e desejos. Esse mesmo argumento é usado por Ana Rosa Moreira, membro do núcleo da Aliança pela Infância de Juiz de Fora e professora do curso de pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). “Eu acredito que a família tem o direito de escolher a escola, de trabalhar junto e estar presente dentro dela. A grande maioria da população não terá como optar por colocar ou não a criança na escola e apostar na educação domiciliar. Essa escolha valoriza muito o individualismo. Temos que brigar por melhores condições para as escolas públicas, um direito de todos, e não ficar pensando em ações fragmentadas e isoladas.”

Assim como Andressa, Ana Rosa defende que, apesar da escola não ser o único lugar das interações, brincadeiras e aprendizados das crianças, é um espaço que facilita esses processos. “Geralmente os pais ou responsáveis estão trabalhando, então como essas crianças vão para uma pracinha? Além disso, são poucas as praças [disponíveis à população na maioria das cidades brasileiras], os espaços públicos [de lazer] são muito restritos. A escola acaba sendo um lugar privilegiado nesse sentido. Todos nós somos seres singulares. Essa individualidade é formada desde que a gente nasce até quando morremos a partir da relação com o outro.”

Nem em um polo, nem em outro. A mãe, profissional liberal e moradora da cidade de São Paulo, uma das maiores metrópoles do mundo, Bruna continua ouvindo os dois lados, buscando seu próprio caminho (e dentro da lei). “Acredito que a escola é um espaço de construção – ou desconstrução – social, como o são também as associações e a comunidade em si. De qualquer forma, acho que toda criança deve ter o direito ao acesso a uma boa educação [seja na escola ou em casa], convivendo com outras crianças e com a comunidade.”

Debate polarizado

Anteriormente à realização dessa matéria, demos início a uma discussão sobre o tema ensino domiciliar no grupo de WhatsApp com membros dos diversos núcleos da Aliança pela Infância espalhados pelo Brasil. O debate trouxe muitos insumos que estão presentes em diversas passagens do texto, e também nos ajudou a entender um pouco mais da visão daqueles que são contra o homeschooling e os que são a favor.

A seguir, listamos alguns dos principais pontos levantados por cada lado. Tomamos o cuidado de não revelar o nome dos profissionais; o que interessa é expor as opiniões e dar continuidade à discussão. Confira:

Favoráveis ao homeschooling:

  • “Nessa crise de escola, sistema, leis, pais e professores, esquecemos que não estamos lidando com uma massa inerte, estamos falando de crianças que não querem estar nos ambientes escolares por alguma razão. Se a criança é obrigada a frequentar um ambiente que não quer, isso pra mim é uma violência. A criança vive o ambiente, ela precisa de proteção.”
  • “Mesmo que haja uma reforma no ensino, até que isso aconteça, como ficam as crianças que podem ter oportunidades melhores dentro do seu próprio lar? Por que tirar essa chance das famílias?”
  • “Não entendo que a educação domiciliar está em oposição à educação pública de qualidade. Isso nos divide entre isso ou aquilo. Estamos falando de liberdade para oferecer o melhor para seu filho. Muitas crianças entram em sofrimento nas limitações de ambiente escolar (público ou privado). Pais que usam essa opção podem ser tudo menos apáticos. Geralmente são pró-ativos e partem para essa opção depois de várias tentativas com a escola.”

Contrários ao homeschooling:

  • “A criança em situação de vulnerabilidade, cujos pais não colocaram na escola, pode estar em situação de trabalho infantil e os pais alegarem sua ausência da escola como homeschooling.”
  • “Acho que a criança perde muito sobre os aprendizados que a escola dá para além da relação professor/aluno. E, diante da conjuntura política de sucateamento da educação que estamos vivendo, acho um tiro no pé para um maior sucateamento e responsabilização exclusiva da família por essa educação.”
  • “O STF aprovar o homeschooling sem regulamentações é bastante arriscado, porque as crianças que não têm a oportunidade de ter acesso a uma boa educação domiciliar (ou seja, a maioria da população) podem ficar sob risco grave de negligência com seu direito à educação que, constitucionalmente, é de responsabilidade compartilhada do Estado, da sociedade e da família.”

 

Foto 1: Crédito: iStockphoto/Getty Images.

Foto 2: A arquiteta Emília Lourenço, que tirou a filha Clarissa da escola há dois anos, foi entrevistada pelo Correio Braziliense e defende a regulamentação do ensino domiciliar. Crédito: Correio Braziliense.

Foto 3: Crédito: Getty Images.

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