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Encontro virtual promovido pela Aliança pela Infância discute currículo social e garantia de direitos à luz do ECA

16 de julho de 2020

Em 1990, o dia 13 de julho representou a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um dos principais documentos referentes à proteção integral e garantia de direitos deste público. Por acreditar na importância de refletir sobre os avanços do ECA, bem como os pontos a serem melhorados, a Aliança pela Infância promoveu o evento online Aprender nas Infâncias: Currículo social e garantia de direitos

A iniciativa integrou a programação do Especial ‘ECA 30 anos: o Estatuto está aí, basta cumprir’ que, ao longo de quatro dias, realizou transmissões ao vivo para discutir o direito ao brincar, o ECA, inclusão, infância na América Latina e muitos outros temas. 

O papel da afetividade 

Transmitido pelo canal no YouTube da Aliança pela Infância, o bate-papo contou com a participação de Livia Melo, pedagoga, estudante de psicologia e articuladora do núcleo da Aliança pela Infância de Recife (PE); Aline França, pedagoga, fundadora do Instituto VAI e da Tribo Educação e mobilizadora do núcleo de Sorocaba e Araçoiaba da Serra (SP); e Jacqueline Lopes, estudante de pedagogia e membro do núcleo de Juiz de Fora (MG), além da mediação de Letícia Zero, coordenadora da secretaria executiva do movimento. 

O momento inspiracional que deu início ao evento ficou a cargo da leitura da carta de princípios da Aliança que, em diversas passagens, reforça como adultos devem possibilitar as condições para que crianças possam exercer seu direito a uma infância plena e digna. 

Para Aline, dois fatores são fundamentais para que exista um aprendizado de fato: afetividade e interesse. “Apesar de afetividade não estar presente na lei, o respeito à diversidade humana está. Por isso, se agimos com respeito à criança e à sua individualidade, conseguimos demonstrar a afetividade e despertar o interesse dela para aprender. Na relação adulto-criança, ela vai aprender de nós o que realmente somos”, defendeu. 

A mobilizadora reforçou que é importante refletir sobre colocar efetivamente em prática o Art. 4º do ECA, que fala sobre o dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público em assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 

“Muitas vezes, quando falamos de prioridade absoluta, não conseguimos perceber isso no dia a dia. Mesmo em um serviço sendo para crianças, por exemplo, elas devem ser silenciadas, não podem fazer barulho. Não lembro onde ouvi a frase ‘o maior cientista da infância é a própria criança’. É por isso que é importante ouvirmos”, defendeu Aline. 

O direito à educação 

O encontro teve como objetivo debater o aprender nas infâncias, que representa a letra A do ABCD Encantado da Infância, eixo norteador do trabalho da Aliança pela Infância. Apesar de o aprender não se restringir ao aprender pedagógico realizado na escola, Jacqueline Lopes reforçou o fato de que 262 milhões de crianças e jovens estão fora da escola no mundo (saiba mais), o que significa que o direito à educação não está sendo observado. 

Ao passo que a educação é, historicamente, construída sobre um paradigma de instrução, com o professor no centro da sala de aula como detentor do conhecimento, o paradigma da aprendizagem, mais centrado nos estudantes, e o paradigma da comunicação, que não fala sobre um professor ensinante e um aluno aprendente, mas sobre a relação entre eles, são novas possibilidades que conversam melhor com os tempos atuais. “Ninguém vai a um dentista de 100 anos atrás. Mas a escola continua a mesma do século passado. Precisamos lutar por uma nova forma de se fazer aprendizado, além de defender políticas públicas nessa direção.”

Além disso, a estudante de pedagogia também pontuou a importância de um currículo social que considere a diversidade de locais onde a criança está inserida, bem como sua própria diversidade. “Pouco se fala de um currículo que seja intrínseco. As crianças precisam ser atendidas em sua subjetividade. A cada contexto cultural e social que ela vive, vai precisar de um currículo adaptado”, afirmou Jacqueline. 

A importância de uma educação antirracista desde cedo 

“Muita gente diz que não é bom ser racista, mas me parece que, às vezes, isso é um discurso, uma narrativa que não está incorporada no gesto e no coração.” Com essa fala, Livia Melo sublinhou a importância de adultos aprofundarem e ressignificarem seus gestos e olhares, que são instrumentos potentes para o aprendizado. “Temos um mundo com sete bilhões de pessoas pertencentes a diferentes culturas, raças e etnias. Isso é que bonito, mas parece que estamos deixando de ver a beleza no diverso.” 

Durante o bate-papo, ela comentou sobre a influência do período de escravidão no Brasil e citou a psicanalista e professora Suely Rolnik, que afirma que o país ainda carrega um inconsciente colonial. “Muitas vezes, sabemos com a cabeça que o racismo não é bom, mas reproduzimos comportamentos racistas. Principalmente pessoas brancas continuam a olhar adultos e crianças negras em uma posição de subalternidade. Em uma pesquisa, 90% das pessoas afirmou que o país é racista, mas quando questionadas se elas próprias o são, os mesmos 90% afirmaram que não”, exemplificou.  

Para a estudante de psicologia, não é só a polícia que mata quando invade uma casa e mata João Pedro Mattos, menino de 14 anos morto durante operação policial em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, mas a indiferença e falta de afeto à criança negra também mata. 

Em outro exemplo prático de como o racismo está enraizado na sociedade e faz vítimas de qualquer idade, Livia citou Fabiana Oliveira, professora que, em sua pesquisa de dissertação, observou que, em um berçário, crianças negras recebiam menos afeto, colo e afagos do que as brancas, além de receberem apelidos pejorativos antes mesmo do primeiro ano de vida. 

Em diálogo com os dados trazidos pela colega Jacqueline, Livia reforçou a importância de crianças terem, sim, seu direito à educação assegurado. Entretanto, questionou a que tipo de educação os brasileiros têm acesso. “Acreditamos que o racismo é ruim, mas mal há interesse em entender quais são os processos históricos que contribuíram para criá-lo, ou como cada pessoa pode trabalhar para identificar suas próprias práticas racistas. É importantíssimo que nós, enquanto educadores, possamos ter práticas antirracistas no nosso olhar, coração, gestos e jeito de atuar no mundo.”

Jacqueline entrou no debate e compartilhou a importância de cada pessoa entender que todo mundo, em certa medida, reproduz comportamentos racistas. Ela dividiu a experiência de, a partir de uma palestra, ter identificado esse tipo de prática em algumas de suas ações. E, para ela, caminhar em direção a uma educação antirracista envolve pensar em um currículo e modelo educacional que dê espaço às diferenças. 

“Se temos que falar em inclusão, é porque estamos excluindo as crianças. Vivemos uma sociedade altamente excludente. José Pacheco, educador português e criador da Escola da Ponte, em Portugal, afirma que um professor sozinho dando aula não consegue contemplar todas as diferenças dos estudantes e, por isso, a Escola da Ponte cria condições para que as diferenças sejam atendidas e respeitadas”, explicou Jacqueline. 

Já para Aline, uma educação antirracista passa do exemplo dos adultos para as crianças, com a desconstrução de olhares e vieses racistas quando, por exemplo, cruzar com uma pessoa negra na rua. 

Fique por dentro 

Durante mais de uma hora de bate-papo, que pode ser visto na íntegra neste link, surgiram inúmeras indicações de leituras. Confira algumas abaixo. 

Minha dança tem história – bell hooks 

Meu Crespo é de Rainha – bell hooks 

O mundo no Black Power de Tayo – Kiusam de Oliveira

Irmãos Zulus – Rogério Andrade Barbosa

​Luanda, filha de Iansã – Lia Zatz

A África, Meu Pequeno Chaka – Marie Sellier e Marion Lesage

Multiculturalismo: Diferenças Culturais e Práticas Pedagógicas – Antonio Flávio Moreira e Vera Maria Candau 

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