Inspirações e experiências

Aprender

Aprender a confiar no primeiro ano de vida – por Renate Keller Ignácio

9 de outubro de 2020

Como entender as formas de cuidar e incentivar uma criança recém-nascida

Por: Renate Keller Ignacio

Quando nos encontramos diante de uma criança recém-nascida, sentimos que estamos presenciando um milagre: o corpinho tão pequeno, o enigma de uma biografia que está se iniciando, a certeza da proximidade do mundo espiritual e a responsabilidade de cuidar deste novo ser; tudo isso nos faz silenciar e encher o nosso coração de admiração e gratidão.

Ao mesmo tempo, vivemos numa época muito conturbada, cheia de medos e inseguranças. Temos dúvida do que está certo e do que está errado moralmente, se devemos seguir uma religião ou não, de como devemos educar os nossos filhos, se devemos ser severos ou liberais, sobre como devemos nos alimentar, etc. Estamos numa espécie de solidão quando o assunto é cuidar e educar nossas crianças e sentimos a necessidade de estudar e compreender os fenômenos ao nosso redor para conseguir tomar as decisões certas em cada momento.

 

Os cuidados da primeira infância  

Este cenário de insegurança e medo existe também em relação aos cuidados com um bebê recém-nascido. Estamos ansiosos em relação ao seu desenvolvimento saudável e torcemos para que, no futuro, ele seja um vencedor nesta sociedade competitiva. Queremos ver o nosso filho sentar, ficar em pé ou andar, o mais rápido possível, e comparamos ele constantemente com outras crianças da mesma idade. Nós sentimos orgulho se o nosso filho já está durinho com poucas semanas, ou se ele anda antes de completar o primeiro aniversário.

Transmitir nossa ansiedade para as crianças deixa elas também ansiosas, insatisfeitas e irritadas. Eis o início de uma baixa autoestima que influencia negativamente todos os aprendizados futuros.

 

A importância da autoconfiança

Como podemos transmitir um profundo sentimento de autoconfiança às gerações futuras? Uma autoconfiança capaz de ajudar no desenvolvimento das habilidades de cada um, no fortalecimento da resiliência e de comportamentos pacíficos?

Ao meu ver, podemos fazer isto durante os primeiros anos de vida, principalmente, no primeiro ano, quando a criança faz a sua primeira experiência de aprendizado. Aqui ela aprende, passo a passo, a habitar seu próprio corpo e a dominar seus movimentos. Ela se ergue para a posição vertical, vencendo a força da gravidade, adquirindo a base para a condição humana de independência e liberdade. Vencendo o peso da gravidade, ela adquire a confiança.

A pediatra húngara Emmi Pikler dirigiu durante trinta anos, depois da Segunda Guerra Mundial, um lar para crianças de zero a três anos e estudou minuciosamente o desenvolvimento da capacidade de se movimentar de mais de duas mil crianças.

Ela chegou à conclusão de que qualquer criança normal conquista o seu corpo e os seus movimentos, passo a passo, sem a ajuda direta dos adultos, cada uma no seu tempo e da sua forma individual, desde que proporcionemos a ela um espaço adequado.

Tenho certeza que podemos formar crianças que se movimentam com iniciativa própria, com equilíbrio e com alegria, crianças que conhecem os seus limites e possibilidades e que se tornam adultos cheios de autoconfiança, inteligência e equilíbrio emocional.

 

A relação, comunicação e cooperação entre educadora e criança

Uma das revelações mais importantes no Lar Lóczy é que, quando cuidamos do bebê, criamos a nossa relação de confiança. Nesse momento, o bebê não é um simples objeto que deve ser higienizado ou alimentado o mais rápido possível, ele é um ser que se comunica, que quer ser respeitado, que quer ser ouvido e compreendido, que quer interagir.

As educadoras neste lar aprenderam a cuidar do bebê conversando com ele. Elas olhavam nos seus olhos e descreviam precisamente tudo o que pretendiam fazer. Esperavam um pouco para ver se o bebê queria cooperar, dando tempo para ele mostrar a sua iniciativa de ajudar. Por exemplo, quando a educadora quer vestir a camiseta depois do banho, ela mostra a peça e pede para o bebê esticar o bracinho. Ela espera um pouco para que ele possa cooperar e, só depois, coloca o bracinho na manga. Nesse processo de cooperação mútua, o bebê vai conhecer a sua educadora e vice-versa. Ele é incentivado a sinalizar os seus desejos, os seus desconfortos.

Se procurarmos compreender os sinais, primeiro sutis, depois cada vez mais claros do bebê, então ele desenvolverá a sua capacidade de comunicar as suas necessidades e aumentará o seu interesse e confiança no adulto. Como o bebê ainda não sabe falar, ele se comunica por outras vias e a educadora precisa aprender e desenvolver todos os seus sentidos para compreendê-lo.

Um dos sentidos mais importantes para a educadora é o tato. Podemos, por meio do do toque, perceber as contrações mais sutis na musculatura do bebê e compreendê-las. Da mesma forma, percebemos quando está relaxado e sentindo prazer com o toque da nossa mão.

 

A organização do espaço

Além da relação da educadora com a criança, a organização do espaço é condição fundamental para o desenvolvimento motor saudável. Dois princípios devem orientar as nossas ações: o princípio da liberdade e o princípio da proteção. Isto quer dizer que em cada fase de desenvolvimento da criança devemos proporcionar a ela liberdade suficiente para o exercício dos movimentos e ao mesmo tempo proteção e aconchego, para ela se sentir segura.

Em um berçário, onde temos juntas várias crianças da mesma idade, estamos falando de uma proteção para todas.. No primeiro ano de vida as crianças ainda não são capazes de brincarem juntas, mas cada uma explora individualmente o seu corpo e a sua relação com o ambiente. É importante que a criança possa fazer isso sem a interferência constante do adulto ou de outras crianças. Partindo dessas observações, Emmi Pikler desenvolveu medidas progressivas de bercinhos e cercadinhos para cada fase de desenvolvimento.

 

Fortalecendo a iniciativa própria

Uma outra dica importantíssima é: nunca colocar o bebê em uma posição que ele ainda não conquistou por si próprio. A posição inicial é na horizontal e de costas, numa superfície firme que possibilita os movimentos do corpo. Não devemos carregar a criança na posição vertical, mas sempre deitada, apoiando a cabeça e a coluna. Aos poucos, através dos movimentos involuntárias, o bebê desenvolve a sua musculatura. Aos poucos domina os movimentos, começa virar a cabeça, se deslocar no berço, brincar com as mãozinhas, virar de lado e virar de bruço. É um processo que requer muita força de vontade, perseverança e foco. A felicidade na conquista de cada passo é enorme.

A partir da conquista da posição de bruço, o bebê brinca mais tempo nesta posição, ergue a cabeça e o peito da superfície, percebe cada vez mais seus joelhos e pés e começa a se arrastar de barriga para finalmente engatinhar. Cada uma destas etapas pode demorar semanas, dependendo da individualidade de cada criança.

Se carregamos o bebê em posição vertical, colocando a cadeirinha semi-levantada, facilitando desta forma sua visão do ambiente, o bebê vai gostar de ver as pessoas se movimentando ao redor e não vai se esforçar para conquistar os movimentos descritos anteriormente, nem ter a sensação de sucesso em cada conquista.

Se seguirmos os ensinamentos de Emmi Pikler, a criança vai se movimentar por muito tempo na horizontal, no chão, arrastando, rolando e engatinhando. Assim fortalece a sua musculatura para se erguer e ficar em pé. A vertical é uma conquista e a alegria, liberando as mãos e olhando ao redor nesta perspectiva essencialmente humana. Vamos exercitar mais uma vez a nossa paciência e esperar que a criança faça os primeiros passos livremente por iniciativa própria, sem precisar da nossa mão.

O jovem adulto que teve a oportunidade de percorrer este caminho quando bebê terá implantado nas profundezas de sua corporalidade a certeza de que é capaz. Ele poderá ser um cidadão ativo promovendo a Cultura de Paz.

 

Renate Keller Ignácio é artista plástica, arte-terapeuta, cofundadora e presidente da Associação Comunitária Monte Azul. Graduada em Arte e Educação pela academia de Belas Artes em Hamburgo – Alemanha, mora no Brasil desde 1974. Também administra aulas de violino e rege a Orquestra Infanto-Juvenil. Atuou durante 12 anos como professora de educação infantil e coordenadora pedagógica das creches da Monte Azul. Autora dos livros: “Criança Querida – o dia-a-dia das creches e jardins de infância” e “Criança Querida: aprendendo a andar – aprendendo a confiar”, editados pela Associação Monte Azul.

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