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“A arte é um aspecto expressivo importante, uma possibilidade de elaborar o mundo e de aprender”; Aliança pela Infância entrevista a artista e educadora Stela Barbieri

7 de novembro de 2019

Van Gogh, Picasso, Tarsila, Dalí, da Vinci, Monet, Michelangelo, Portinari. Esses nomes estão estampados nas placas pelos museus mundo afora e cravados no imaginário popular quando falamos em arte. Mas onde está a arte, afinal? Em todo lugar. Ou em quase todos.  Ao entrar em uma sala de aula nos deparamos com um mundo de desenhos, traços e formas. Crianças começam a se expressar no papel desde quando conseguem segurar uma caneta, giz ou lápis. Antes de andar os bebês dançam. Antes de falar, eles entoam canções. Antes de desenhar, eles rabiscam. 

Os primeiros desenhos e rabiscos das crianças, ainda bastante elementares, são chamados de garatuja. Elas são carregadas de significados e acompanham o desenvolvimento humano. As brincadeiras com tinta, giz de cera ou de lousa, canetas e lápis coloridos são um mundo encantado de possibilidades. Traçar, riscar, delinear, decorar e construir podem significar métodos que os seres humanos acessam para externalizar suas emoções e mostrar sua visão de mundo. 

No estudo As etapas do desenho infantil segundo autores contemporâneos, Giseli Aparecida Bombonato recorre a estudiosos da infância e do desenho infantil para argumentar que, ‘antes mesmo de descobrir o traço voluntário, que é quando ela já está entendendo o gesto que liga a ação de rabiscar com a persistência do traço, [a criança] primeiramente irá desenhar pelo prazer do movimento, a partir daí ela desenha para satisfazer-se’. 

Já Edith Derdyk, pintora, desenhista e escritora brasileira, afirma que o rabisco infantil “não é simplesmente uma atividade sensório-motora, descomprometida e ininteligível. Atrás dessa aparente ‘inutilidade’ contida no ato de rabiscar, estão latentes segredos existenciais, confidências emotivas, necessidades de comunicação”.

Para aprofundar a discussão sobre os significados de entregar folhas em branco e materiais de desenho às crianças, a Aliança pela Infância conversou com Stela Barbieri, artista plástica e consultora nas áreas de educação e artes. Stela foi curadora educacional da Bienal de Artes de São Paulo e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake. Atualmente, é assessora de artes plásticas na Escola Vera Cruz e diretora do Bináh Espaço de Artes. 

Aliança pela Infância: Quando a criança começa a fazer arte? 

Stela Barbieri: A criança começa a desenhar desde que nasce, porque ela vai desenhando com o corpo no espaço. Uma pesquisadora dos anos 60 chamada Rhoda Kellogg fala que se tivéssemos uma maquininha que pudesse registrar os movimentos dos pés, mãos e do corpo inteiro da criança desde o nascimento, já teríamos as primeiras garatujas. 

API: Você acredita que rabiscar faz parte do desenvolvimento de habilidades motoras e da capacidade de interpretação do mundo?

Stela: Eu acredito que todas as crianças são investigadoras. Desde pequenas vão percebendo as marcas que fazem, e vão fazendo uma correspondência entre o movimento realizado e a marca que isso gera no espaço. Com isso, vão tendo um prazer visual com a marca e dialogando com o desenho. Não precisamos pensar em desenhar para desenvolver questões motoras. Elas são consequência e não o nosso foco, que é sustentar as investigações que as crianças estão fazendo. O ato de desenhar pode ser uma observação do mundo, uma maneira de estar atento e se relacionar com mais apuro e cuidado com aquilo que está sendo observado, porque quando você vai desenhando, vai trazendo os detalhes. 

API: Então os desenhos podem ser considerados formas de as crianças expressarem suas descobertas e pensamentos?  

Stela: O desenho traz a possibilidade de irmos clareando para nós mesmos o que estamos pensando. As crianças pequenas vão narrando os seus desenhos e vão aproximando os movimentos, a expressão gráfica e o aspecto simbólico dessa expressão. Essa atitude de propor um momento de desenho todos os dias sem uma conexão entre a prática e aquilo que a criança está interessada dá origem a uma proposta sem sentido. É legal desenhar bastante porque o desenho é uma linguagem muito interessante não só para tornar visíveis as nossas ideias, mas também para nós aprendermos sobre os nossos próprios pensamentos e linguagem. 

API: É possível fazer uma leitura das garatujas, algum significado que adultos podem depreender disso ou esse exercício de interpretação não deve ser feito?

Stela: Acho que existe uma complexidade no desenho que precisamos tomar cuidado para não simplificar só porque a criança é pequena. Crianças muito pequenas são potentes para investigar o mundo através dessa linguagem. O desenho tem caminhos interessantes porque ele pode tornar visível uma ideia, pode ser uma relação com a materialidade em si, uma relação com a linha, com o próprio desenho, com as manchas, com os pontos que a criança vai criando, pode ser um projeto e ao mesmo tempo pode ser uma possibilidade de contar para o outro sobre um pensamento. Ao desenhar, ela esclarece para ela mesma essa ideia e também partilha com o outro. Mas quando falamos a palavra interpretação, as pessoas têm uma tendência a fazer uma interpretação psicológica, o que é comum na escola. Ficar restrito ao aspecto atitudinal da criança é uma cilada. É muito desafiador nos relacionarmos com a investigação que a criança está trazendo, com a pergunta que tem ali. Acho que interpretar é mais nesse sentido de se confrontar com o que a criança está nos contando sobre o interesse dela nesse momento, qual é a indagação dela e como vamos sustentar essa investigação trazendo um próximo passo para essa investigação.

API: Quais são os caminhos para essa interpretação que você propõe? 

Stela: É preciso estudar não só o desenho isoladamente, mas a cena, a relação do desenho com o que a criança falou, o movimento que ela fez, para onde ela olhou. Deve-se estudar todo o acontecimento. O desenho está nesse rizoma de vetores, e é preciso compreendê-lo dentro da complexidade do fazer daquela criança. 

API: Como você vê os diversos sistemas de classificação da evolução dos desenhos infantis? 

Stela: Eu sinto que nos anos 60 foi muito importante entender os tipos de desenho que a crianças fazem e como a garatuja vai se transformando. A Rhoda Kellogg, inclusive, teve uma contribuição bastante importante no olhar para o desenho da criança, assim como esses sistemas, que cumpriram um papel fundamental nessa aproximação com o desenho. Mas, se ficarmos restritos a etapas ou núcleos de produção do desenho, será apenas uma constatação do tipo ‘Agora ele ta segurando o lápis, agora fez um desenho radial’, enquanto o que está por trás do desenho é muito maior. Eu não acho que essas etapas de desenvolvimento são estanques e vem uma depois da outra. A mesma criança faz vários tipos de garatuja e nós precisamos entender do que ela está tratando. Garatujas com formas similares não estão querendo dizer a mesma coisa, por isso é preciso entender o contexto de produção. Olhar o desenho somente como etapas classificatórias nos deixa em uma posição de não relacioná-lo com o que está acontecendo. 

API: Como o desenho é abordado na maioria das escolas brasileiras? Existe um padrão ou depende do perfil pedagógico? 

Stela: As escolas e as professoras lidam com os desenhos de maneira diversa. Existem situações em que a criança faz qualquer coisa e ninguém sequer olha. Existem profissionais que estão pesquisado o desenho como marca gráfica, as materialidades do desenho e os sentidos que essa expressão tem, existem pessoas que dão a hora do desenho porque acham que precisa ter isso todo dia, e nesses casos fica um monte de proposições estanques, sem um processo relacionado. Acredito que existe de tudo e o que eu sinto é que estamos precisando perceber que o desenho merece nossa atenção e estudo, e que, muitas vezes, o desenho mais incrível da criança, onde ela está mais envolvida, com questões mais ricas, não está exatamente na sala de aula e sim no tanque de areia, por exemplo.

API: O contato com a arte leva a criança para qual universo? 

Stela: Eu sinto que a área das artes é muito potente para se relacionar com todas as áreas do conhecimento. Existem vários caminhos que fazem a arte fundamental na nossa vida, como a comunicação, a elaboração e criação de sentidos, aproximação e problematização do mundo. A arte possibilita que você investigue as coisas numa outra temporalidade. Hoje em dia, todos nós estamos com um problema sério com o tempo. Existe um mercado onde todo mundo quer capturar o nosso tempo para vender produtos, e acho que talvez essas outras temporalidades e intensidades sejam uma resistência a esse tempo veloz que é tão violento para nós. O fato de poder desenhar uma folha, poder se ater a um movimento, trabalhar com o corpo, poder se expressar, é uma maneira de estar no mundo com sentido e com uma presença que traz mais vitalidade e vontade de viver para a sua vida e mais conexão com as coisas à sua volta, e não ficar numa ‘fazeção’. Não acho que a arte seja redentora, mas ela é uma possibilidade, junto com outras áreas do conhecimento, de sair dessa ‘fazeção’ e estar atento ao que está acontecendo. É um aspecto expressivo importante, uma possibilidade de elaborar o mundo e de aprender.

API: Seja em casa ou na escola, como um adulto pode estimular o desenvolvimento desse mundo sensível e encantado da criança a partir da arte?

Stela:  três elementos fundamentais que sustentam o desenhar: o tempo, a materialidade e o espaço, além da nossa presença como adultos que também ajuda a criar o ambiente. Pensar em uma materialidade interessante, com tempo bom e em um espaço engajador faz muita diferença. Não adianta propor um desenho com um lápis que não risca direito, um giz de cera sem cor, em um papel de qualquer jeito, em um lugar quente e barulhento. Além disso, é importante estar presente. Existem conversas e movimentos que vão acontecendo enquanto a criança está desenhando que são preciosos. Em casa, os pais podem pensar junto com a criança sobre os materiais que vão usar, onde vão desenhar e dar um tempo para isso. O tempo das crianças é diferente. O tempo ideal não é o tempo lento, e sim o tempo das intensidades, o momento onde aquilo tem vigor e sentido. 

API: Quais dicas daria para uma aproximação desse mundo encantado da arte? Uma brincadeira, um espaço, um filme, um dica de leitura…

Stela: O filme Território do Brincar mostra as crianças fazendo arte na natureza, construindo e brincando. É inspirador porque a arte que a criança faz está muito ligada ao seu modo de brincar e de se relacionar com a vida. Uma dica é ficarmos atentos aos movimentos que acontecem em situações corriqueiras do dia a dia e no aprendizado que elas trazem. É legal estar na natureza com as crianças, observá-la e poder usar seus materiais, desenhar na terra, na areia, poder brincar com os gravetos, folhas e as sementes em uma praça. A natureza é um grande manancial de riquezas no planeta. Há uma diversidade de cromatismo, de estrutura, de funcionamento sistêmico que é maravilhoso. Acho que um caminho de arte muito rico é pensar em como possibilitamos que as crianças possam estar presentes e brincar na natureza. 

 

*Imagens: Nova Escola, Estadão e Projecto Brincar e Aprender. 

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